De um momento para o outro a sua vida desmoronou-se. Abria e fechava os olhos não querendo acreditar no que lhe estava a acontecer. Já nem era uma questão de demónios escondidos no seu sub-consciente, mas a realidade desenhada em cores sombrias que levara ao brutal assassinato de todos os seus conhecidos, desde a família, à namorada e filhas, aos amigos e meros conhecidos.
Estava em casa envolto num oceano de sangue que lhe brotava do peito sem parar. Lá fora ouviam-se as sirenes e na televisão falava-se de uma chacina sem precedentes num país pequeno junto ao Atlântico. Não, não era um simples pesadelo do qual pudesse acordar. A realidade mudou bruscamente e a loucura instalou-se no seu mundo de ideias feitas. Claro que havia de fazer parar o sangue de jorrar livremente do peito, travar as dores tenebrosas que lhe apanhavam a cabeça, serenar tudo e, quem sabe, acordar de novo como se não fosse nada. Mas era e ao mesmo tempo que ouvia a polícia a chegar ao seu apartamento, subiu ao sótão e rebentou com as telhas. Fugiu, completamente nu e ensanguentado. No desvario da situação tropeçou e caiu para a rua. Tudo ficou negro, não se conseguia mexer e a polícia fechava todas as possibilidades de escapar. Ninguém imaginaria que pudesse ter salvo um osso que fosse daquela queda aparatosa. Porém o pesadelo dos perseguidores transformou-se em realidade e deu-se um fenómeno meteorológico raro, com um temporal indescritível que alagou toda a zona em volta dos seus corpos, arrastando-os para parte incerta.
Horas depois acordou e o Sol brilhava, mais intensamente que nunca. Muito rapidamente pôs-se de pé, vestindo um fato impecável, com uma gravata de fino corte e uns sapatos de marca internacionalmente reconhecida, caminhava apressadamente rumo a algum sítio.
Esteve nesta azáfama algum tempo. Parou num quiosque e viu os jornais a anunciarem um suposto serial killer que desaparecera misteriosamente na noite passada, após ter deixado atrás de si um gigantesco rasto de sangue e corpos despedaçados. Seguiu, como se nada daquilo tivesse algo a ver consigo. Não tinha porque ao passar por um espelho não reconheceu a sua própria cara. Não se assustou, buscou um banco de jardim e sentou-se, inspirando profundamente para entender o porquê daquilo tudo.
Primeiro tirou a carteira, vasculhando os cartões e possíveis fotos. Viu apenas o cartão do trabalho e a carta de condução. O nome não condizia com o seu, apesar da cara ser a mesma. Aos poucos começou a entender que aquele passo de loucura era tão somente a possessão de outro corpo. O porquê já lhe havia sido explicado, era tempo de começar a entender.