sexta-feira, 25 de junho de 2010

024 hoje escrevo e odeio

As noites em claro são memórias más, mais cedo ou mais tarde a cabeça começa a funcionar com erros e o pensamento desmorona-se ao ponto de aquilo que para qualquer um é iluminado não passar de trevas sem solução para quem se sente no fundo do poço.

Claro que podia ser uma noite de São João numa praia junto ao Mediterrâneo, com uma pessoa do sexo oposto, preferencialmente nua e o corpo cheio de pica para foder. Dessa praia apenas tinha as memórias caseiras, do carro antigo, onde se arriscava a uma prisão por conduta obscena, muito embora apenas se lembre da fulana que falava em matar-se após um orgasmo, chorando de saudades pela picha que lhe subia mais acima do umbigo.

Subia-lhe à cabeça visitar o passado e encher essa cretina de esperma na boca, apenas para que se calasse. Pensava nisto e sorria, a sua mente ainda conservava alguma perversão que lhe proporcionava erecções despropositadas seguidas dos naturais embaraços das senhoras de idade que supostamente já não teriam disso em casa. Porém não era consumido pela vontade de se acalmar pela via da masturbação, até porque, convém recordar, essa coisa da morte no momento pós-orgasmo tinha passado à história. Falava-se de vida, de projectos definidos mesmo que futuro não proporcionasse nada daquilo que lhe vinha à cabeça em cada instante do presente.

Era possível que Nossa Senhora o protegesse, apesar do ódio que o consumia, até porque no seu sonho recorrente, em que as cortinas vermelhas quase o sufocavam, era igualmente presente uma tremenda sensação de paz, que o fazia acreditar que a Mãe de Deus daria o correctivo necessário ao seu Filho absolutista de forma a que o sofrimento na Terra passasse a ser apenas e só objecto arqueológico de estudo pela futura humanidade.

Em vez do ADN o potencial criminoso passaria a ser identificado pela densidade óssea onde, no período de gestação, haviam sido inseridos pós microscópicos por nano criaturas rebeldes e em permanente mutação. Essas partículas eram expiradas dos pulmões do Imenso Ser Divino que governa todos os deuses da humanidade e todas as criações destes, numa galáxia muito para além do ridículo conhecimento proporcionado aos abjectos e ignorantes humanos.

Seria a forma cientifica de aproximar a religião católica dos desavindos crentes, cada vez mais alheios à concretização de um mundo viável segundo as ordens emanadas do ALÉM  ABSOLUTO, assim com letras grandes para que não restem dúvidas sobre o verdadeiro embuste que o ser humano provoca e o seu semelhante.

Era-lhe impossível escrever e não sentia ódio, vivendo numa terra chamada Castelo do Queijo, onde as pessoas eram de tal forma retrógradas que mais parecia o padre ser um desavindo de Deus. Claro que só ele sabia o quão fiel era às Sagradas Escrituras, o fiel depositário da sua mensagem naquela paróquia.

Depois abria os olhos e de vermelho apenas as cortinas, o queijo limitava-se ao odor exalado do seu corpo que depois se entranhava fundo na fronha da almofada barata.

sábado, 19 de junho de 2010

023 o teu rosto enevoado

As memórias que o faziam ausentar-se do corpo cansado de não fazer nada eram cortados pela abrupta sensação de que para além das improvisadas cortinas vermelhas havia algum muçulmano a rezar, mesmo na varando apenas esperando algum deslize bíblico para desintegrar o corpo em nome do seu deus. Para além de delírio constatava ser uma premissa válida que apenas o atormentava mais, apesar de não ter filhos e muito menos frequentar mercados apinhados de gente despreocupada pelas possibilidades dadas por cada um dos deuses em que acreditavam. 

Olhava com mais atenção e não passava de um mero pombo que depenicava algo que por ali caíra, vindo do andar de cima, possivelmente um pão inteiro que ia secando enquanto todos os dias ia sendo comido, sem o medo do fim do mundo que consome todos os supostos seres racionais. 

Sabia-lhe melhor a tese da conspiração, como se fosse um pretexto para manter a obscuridade de uma casa que lhe provocava insónias. Outra vez delineava-se um rosto, previsivelmente feminino embora a sombra tapasse as delicadas feições, os insinuantes trejeitos e a possibilidade de adivinhar um qualquer pensamento pelo odor exalado. Parecia-lhe o rosto enevoado da mulher que urgia amar e assim já podia fechar os olhos, substituir os pesadelos recorrentes pelo amor, que não tinha de ser apenas imaginário.

Visualizar aquele rosto imaginário apenas lhe trazia tranquilidade. Ao ligar o obsoleto equipamento de som que jazia ao lado da cama era uma forma de esquecer-se do ar frio que se abatera por aquela zona sem vontade de partir. Sorria sem saber para quem, apenas sentia que um qualquer amor o tinha seduzido para viver uma vida normal, a dois, com rotina e pedaços de gelatina depois do almoço.

O telefone costumava tocar pouco depois de adormecer, caindo num breve sonho idílico, era a sua namorada avisando que estava para chegar. Era real o amor que faziam, e que o rosto enevoado dos sonhos se transformava em realidade, talvez com encanto, seguramente carregado de doces dificuldades que apenas aumentariam do zero o gosto pela vida.

Sim, as filhas e a constituição de uma família, não porque é normal, mas apenas porque só isso o tornaria feliz, era o seu desejo e ele já o sabia há bastante tempo, mesmo antes de as conhecer.

Quando abria os olhos a consciência que o habitava não desvanecia o sonho, sentia-se dono do seu mundo e longe das utopias irrealizáveis, em que uma miserável conjugação de factores o iriam impedir para sempre de sentir a força de um amor puro entre homem e mulher   devidamente consubstanciado com um possível filho do dois.

sábado, 12 de junho de 2010

022 o tempo de regressar

O avião era sinónimo de regresso, apenas e só, porque mesmo quando ia levava a sensação de deixar um abraço a alguém que às vezes pensava nunca mais ir ver. Porém esse regresso era feito de encontros inesperados, quase sempre saídos de uma surpresa que às vezes se tornava desagradável.

O regresso era sempre físico, que a alma quebrava-se em mil e um pedaços de nada, sem nada o prever voltando a formar almas obedientes para construir a maior e histórica derrota de um socialista que apenas omite as suas falhas perante a possibilidade de governar com maioria absoluta. Presumivelmente a história da gaveta e do socialismo guardado nem para brincadeira servia, tais eram as atitudes mafiosas que punham em questão a própria sobrevivência da liberdade de votar, ou nem isso.

Isso fazia-o lembrar-se do primeiro regresso em que as lágrimas quase caíram dos olhos ao ver a cidade natal do ar. A hora, essa, já não era propícia para votar, que nesse dia havia eleições legislativas e quem teria ganho nesse dia era um exercício a que não queria sujeitar o seu cérebro desgastado, antes a opção pela bazuca aos ombros e uma arma letal apontada à eterna continuidade no lodo, num sistema a que chamavam de democracia.

As coisas tinham tendência a tornarem-se obsoletas e o regresso aos locais de infância estagnada apenas o lembravam aquelas manias do ruído que não deixavam adormecer e das preocupações por assuntos que nem merecem ser pensados. Decerto que se esse regresso se tornasse definitivo os anti-depressivos regressariam à sua vida e isso punha-o pensativo na urgência de regressar onde não sentia essa necessidade de químicos atenuadores da pressão que o atormentava de tempos a tempos.

A alma devia mesmo existir e o desejo de nesse regresso ver todas as estrelas que habitavam no seu coração apenas era atenuada com o pensamento fixo em trivialidades como a falta de dinheiro e sobretudo na ideia que a diversão é sempre secundária perante ele. era sempre momento para concluir que o diabo existia e que deus apenas limpava as escadarias de acesso ao Céu, por falta de mão-de-obra, o que o deixava sem tempo para orientar as cabeças perdidas dos humanos cada vez mais enterrados num buraco vazio de sentido apesar dos efeitos coloridos que atenuavam a frustração de não ter o que se queria.

E depois havia sempre a partida, o regresso, não ao futuro, mas tão somente um encontro seguro com os desejos do coração, sem se deixar influenciar pelas ervas daninhas que eram quase sempre parte predominante no ecossistema que o rodeava.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

021 cinzento amanhecer

Descobrir qual a sensação de um amanhecer sorridente, inócuo e sem preocupações, eis uma espécie de missão que se afigurava impossível. Previsivelmente a solidão evitava discussões, porque as paredes têm ouvidos mas boca só em filmes de ficção cientifica. Então porque não coexistia com o seu envelhecer uma fórmula oca de felicidade que tão bem se adaptava a tanta gente que conhecia? Era algo que o deprimia ainda mais, apesar de se estar nas tintas para os outros, e os outros apenas lhe darem sorrisos e palmadinhas nas costas.

Esses amanheceres eram-lhe vedados, assim como a obrigação de se fixar onde nascera, algo que apenas lhe acentuava a vontade de se suicidar. Por mero acaso, ou não,  a sua mãe passou a ligar-lhe depois da hora de almoço. E dormia mal, pela manhã com o sono a acentuar-se pouco antes do telefone tocar. Era como se vivesse aquela canção do Variações, 'estou além', porque parecia estar apenas o seu corpo e a vontade de fugir elevada à potência máxima. Claro que tanta carga negativa apenas lhe proporcionava a companhia de gente pouco dada a confusões de multidão e a opiniões quase sempre reveladoras de austeridade. Talvez por isso não se atenuasse a vontade de fugir, algo que ia congeminando há muito tempo e que o levaria ao destino mais que provável da passagem para a tranquilidade.

Essa fuga ia sendo adiada vezes sem conta, quer pela sua inércia perante as complicações, quer por uma tremenda desilusão por não ter com quem partilhar os amanheceres, algo parecidos com as noites sem fim do universo infinito para onde, desintegrando-se, queria partir em excursão definitiva, sem qualquer tipo de guia ou mensageiro que anunciasse novas ou meras ovas.

Ficar inerte na cama, por vezes arriscando um  poema sem sentido nem alarido era como que o bálsamo para a sua mente perturbada pelo vazio, com que o mundo louco que o rodeava o tentava preencher.

A sua sorte foi a de se deixar guiar pelos instintos, pelo que qualquer passo menos afortunado ao menos dar-lhe-ia a sensação de ser a melhor decisão possível. Não havia como fugir à vontade de encontrar a mulher da sua vida, que lhe proporcionaria os filhos com que tanto sonhava e que pareciam estar-lhe vedados pela maldição que lhe havia sido lançada aquando da sua adolescência.

Porém, bem mais tarde após alcançar parte do sonho restava-lhe a sensação de que apesar do Sol brilhar mais entre as sucessivas manhãs, era seguro que a vida teria poucos motivos para celebrar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

020 insuportáveis noites de novembro

A concentração tornava-se um martírio quando chegavam as chuvas mais intensas. Suportar aquela cama de casal sem companhia tornava-se um exercício quase penoso que, invariavelmente, terminava com despertares em estado de pura angústia. Às vezes o suor caía pelo rosto sem que sequer se atrevesse a mexer, não fosse algum daqueles possíveis fantasmas a revelação dos seus medos mais profundos.

Por vezes pegava numa caneta e tentava fazer um organograma que se tornava interminável tornando-se as pessoas, que nele deviam estar, descritas como meros clones de demónios para os quais não havia exorcismo possível.

Era possível que enquanto Novembro durasse o acompanhassem as brutais enxaquecas, pelo que se foi tornando cada dia mais alucinado. Os comprimidos para a depressão crescente limitavam-se a secar as lágrimas e a controlar uma fúria desmedida que exercia quase sempre contra si mesmo, e ia piorando todos os dias.

Nesta fase da sua vida recuperava de um acidente de automóvel que lhe custou muitos meses de vida, numa altura crucial em que estava prestes a tornar-se efectivo na empresa onde tentava demonstrar a qualidade do seu trabalho sem que os seus chefes se preocupassem ou tomassem como exemplo os bons resultados obtidos antes da fatalidade.

Mas outros Novembros se seguiriam, sem os comprimidos, talvez com a noção de que as coisas deviam ser feitas com tacto, por isso encarava como castigo que a namorada lhe pusesse na boca palavras obscenas que ele não sentia, sendo-lhe impossível admitir que as tivesse proferido.

Seria tudo mais fácil se arranjasse a coragem suficiente para se suicidar, porém quanto mais pensava no assunto mais lhe vinha à memória a gente no mundo que o amava, sem falar no presente, um sombra que se escapava e o fazia pensar que a coragem era permanecer vivo.

Era então o tempo dos desamores que o levavam a pensar emigrar para o hemisfério sul, num daqueles paraísos onde era sempre Verão e o clima a vários quilómetros de altitude se dilacerava tornando a presença de artefactos e vida humana uma aventura com destino pouco feliz. Pelo menos as estatísticas não mentiam, tanto para o bem como para o mal.

Outras vezes, de sorriso estampado, num rosto cansado de não sorrir, viajava por mundos infinitos de paixão absorvendo energias que invariavelmente se transformavam em momentos positivos criando uma barreira protectora que impedia as almas penadas de se juntarem com os seus falsos propósitos a um ser predestinado a algo mais que uma possessão demoníaca.