sábado, 24 de dezembro de 2011

128 no ardor da carne


Como imaginar 72 loucos a voar, cada um a pensar pela sua própria cabeça e em absoluta sintonia de respeito pelo próximo que a aceite?

Construir os sonhos era fácil, acreditar uns tempos neles ainda mais entusiasmante, o problema era seguir pela vida inteira com a mesma vontade de concretizar as premissas iniciais. Mais que utopia, mera estupidez.
Entre todos, mais do que caos, existia uma invisível vontade de entreajuda. Fosse a morte a solução para melhorar o estado das coisas e eles matariam. O limite era apenas e só o respeito pelo próximo com a natural reciprocidade.

Houve um dia em que as nuvens desapareceram, as centrais nucleares deixaram de ser perniciosas para o ambiente e as pessoas fizeram amor com verdadeira excitação. Os fluídos corporais diluíram-se pela atmosfera e a geração vindoura passaria a viver num Planeta Pipocalíptico, uns dias mais doces outros mais salgados, mas livre de cancros e experiências bacteriológicas potenciadoras de lucro para a indústria farmacêutica. Houve logo quem desconfiasse de tanta felicidade e tratou de bradar aos infernos mais sujos pelo antigo demónio que a todos fazia andar de cabeça baixa. Mas afinal o que era aquilo? Ar puro? Gente a viver sem ser na merda? Com que propósito? Só podia ser obra do demónio? Mas se o chamavam como queriam que o equilíbrio se mantivesse? Lúcifer ria-se de tanta estupidez pegada dos seres feitos à imagem de Deus. Mas o Criador não tinha nada a ver com a estupidez dos seres feitos à sua imagem. Bastava ler a Bíblia de coração aberto para entender que não era ele o omnipotente mas tão só os especuladores que queriam ganhar dinheiro à conta da sua eterna boa vontade. Quase que se podia jurar que Jesus Cristo andava a promover um concurso de corridas de colchões de água aos saltos pelo Oceano impoluto, com alas abertas pelos ensonados tubarões brancos de dentinho sujo pelos resquícios de jantares demasiado proteicos e que afinal não consistiam em humanos. Desses tinham que fugir.

Era tão fácil demonizar o que era bom que assustava as pessoas assustadas quanto ao mal e não a clamarem pela justiça de algum injustiçado. Era sempre mais fácil enforcar primeiro que querer saber a verdadeira versão dos factos.

A Arturo bastava-lhe um clique para limpar um determinado espaço da sujidade reinante, porém nunca se havia concentrado nesse poder e Flor, atenta, queixava-se da aparente imbecilidade do último herói da sua vida.

127 à beira do coração


Nem fim do mundo, nem constatação de ser possível um contexto de paraíso. Não era para isso que tinha sido criado o ser humano. Havia-lhe sido oferecido um órgão complexo com infinitas curvas das quais apenas teria acesso à primeira, outras vezes a avistá-la, outras ainda nem sequer a vê-la. Para ultrapassar a primeira e chegar à segunda só sendo um eleito de Deus. Que raios! Era o cérebro. Sim, essa massa cinzenta comestível e que encerrava em si todos os sonhos impossíveis. Mas havia sempre um qualquer chico esperto que contornaria a situação.

O amor e a dor eram dois dos principais pressupostos que permitiam aceder à vida, aos sentimentos, à confusão necessária que fazia partir os seres em busca de algo melhor. Depois haviam os outros que apenas sabiam como os manipular, a estranheza que provocava a híper actividade de um e a ausência do outro. Estes últimos dominavam facilmente os corações puros, desgraçando as fortunas incalculáveis que residiam dentro dos corações imaculados da fantochada reinante pela imposição de restrições à liberdade, quase sempre em nome da própria.

Muitas vezes a escassez de corações não significava que os corpos assim tivessem de o ser.

A lei do natural crescimento humano tem muitas fases e todas complicadas. Viver, em si, é uma complicação e a Arturo complicava-lhe viver as complicações de cada um dos seres que amava. Não havia pachorra para tanta merda em tão pouca gente, tanta desgraça embutida em seres que se se esforçassem um pouco mais, esqueciam essa inutilidade que é sofrer por amor. Claro que lhe era fácil falar dos outros e por vezes até se abstraía, mas quando lhe tocava pôr em prática o desprezo que tanto advogava, as sementes da desgraça cresciam-lhe dentro do coração minando a tal pureza, que se renovava de vez em quando, ao contrário dos humanos normais aos quais, pura e simplesmente, era retirada sem apelo nem agravo. Tudo eram consequências de Deus e de não Lhe serem tementes. Era o que pensavam os medrosos da sociedade.

Na verdade era tudo mera especulação da sua limitada maneira de pensar. Deixavam-se levar pela incerteza de um amanhã já definido há muitos anos atrás, hipotecando um presente pelos horrores de um futuro que não havia forma de saber como seria. A Arturo irritava-lhe tanto temor ao futuro, tanto desprezo pela vivência do dia-a-dia e tanta afeição ao passado que não voltaria. Tanta lamechice desgraçava o que havia de bom nos seres que iam nascendo e claro que depois não se podiam culpar os ascendentes, sendo que era prática usual dizer que a culpa era do outro, em vez de assumir a verdade.

126 o amor estrangeiro


Simplificando a coisa podia-se ter evitado uma carga de trabalhos. A vida não podia ser uma leva de coisas eivadas de perfeição. Nem teria interesse, nem seria emotiva o suficiente.

Das banalidades recorrentes sentia falta da selvajaria carnal, apesar de isso o afectar cada vez menos. O cheiro de Flor fazia-lhe mais falta que salvar a merda do mundo. Fossem num foguetão visitar o desejo de simplicidade dos superiores de espírito e talvez as cíclicas transformações operadas em tudo o que se movia à face de qualquer terra passassem a ter hora marcada. Mas sem dinheiro, apenas com imaginação pouco mais era possível que apelar ao bom senso e a todas as energias positivas para arranjar um sorriso. Esse era o trunfo de Flor e ainda mais das quatro magníficas cavaleiras do Pipocalipse escondido atrás do Arco-Íris e que não era nada mais que uma pupila de um anjo adormecido por uma cápsula de veneno tsé-tsé enviado pela armada celestial para que ele não alegrasse assim tanto as pessoas.

Arturo já se havia dado conta disso tudo, o normal e as constantes viagens entre dimensões de uma mesma vida que não iriam resolver nada, apenas o colocariam num incómodo colete-de-forças e o encerrariam numa ala perdida de um Hospital onde se fariam experiências sexuais macabras e as almas vagueariam danadas para aterrorizar quem lhes perturbasse a maldição entranhada.

Sabia que podia ser esse o seu futuro, mas resolveu dar mais atenção às mulheres que lhe davam todo o seu sentido de viver. Elas eram devidamente protegidas pelo anjo falsamente adormecido, sem que nunca se houvessem dado conta disso.

As falinhas mansas eram ignoradas. Não era preciso falar para entender o que as pessoas queriam, o que podiam fazer e para que serviam. Por vezes conseguiam ser de tal maneira ineptas para o simples acto de respirar que angustiavam o mais paciente dos peregrinos e Arturo deixara de ter paciência para gente bacoca.

Fez por esquecer-se dos problemas que o afastavam de Flor e concentrou-se nas possibilidades de poder juntar-se a ela sem ter que mudar de dimensão.

Já não era preciso fechar os olhos para sentir o mundo que queria, mas tê-la era como se fosse uma penitência sem fim, e o fim era algo para o que não tinha tempo.

No Além todos ficaram subitamente sérios e foi, por momentos, impossível pôr em prática qualquer praga contra a humanidade.

125 o tempo dos livros


As manhãs sempre foram algo complicadas, fosse no ar ou no chão, com os amigos ou os ratos do porão. Custava-lhe a abrir a mente para mais do mesmo, quando o Universo era quase infinito e o mundo estava quase a acabar sem que sequer uma ínfima parte dele conhecesse.

Nascido num país de fatalismos exacerbados e baixas por natureza, desencantava-lhe o fado. Aproximava-se mais dos livros e da natureza por eles exalada. Eram os poemas e as histórias fantásticas dos sem-medo que já não existiam, as declamações vibrantes de pessoas que depois se espalhavam ao comprido nas suas opções políticas e um verso sobre janelas de alumínio que o havia feito entrar no mundo ainda mais desencantado de um poeta que usava óculos. Nada de novo, tanta gente usava óculos e era estranha, mas estranho e estranheza maior era o facto de esses tempos de utópica liberdade serem o da disseminação dos livros, dos corruptos e da mentira como escola de vida. Fulminava essa escumalha com os olhos.

Possuídos que estavam por demónios em profusão renasciam com o mesmo aspecto, faziam as mesmas parvoíces e na altura da ajuda ao povo roubado eram considerados habitantes de um país menor que merecia desparecer do mapa. De acordo, pensava Arturo, que nesse cu de uma Europa onde até o seu nome era estrangeiro, assistia à vassalagem surreal dos honestos contra os agiotas.

Então para quê ajudar os outros quando nos esquecemos de o fazer a nós próprios? E pensava ainda mais, que o seu povo devia legislar algo acerca disso, cagar-se para os filhos da puta mandantes da miséria em que transformavam a vida daqueles que eram penalizados a todo o instante com as suas opções egoístas! E acima de tudo lembrar-se que ajudava sempre os outros!Sem dúvida que no pedaço de cu da Europa onde toda a merda saía, os cheiros nauseabundos que vinham desses antros de ingratos era sempre recebido com um sorriso injusto. Quando é que iam parar com essa proverbial simpatia? Para quando proibir a entrada desses senhores que, vivendo numa economia comum, tinham sempre opções particulares? Como peregrino da sagrada loucura tinha o poder de exterminá-los e a seu tempo divertir-se-ia com isso. O Campo Pequeno faria jus ao seu nome com tanto aborto enfiado lá dentro para ser devidamente castigado pela sua incurável imbecilidade.

Entretanto lia algo acerca da segunda guerra mundial do século XX. Fechou os olhos. Quando os reabriu sentiu os orgasmos selvagens de Flor a fluírem de encontro ao seu corpo!

124 do homem e das coisas


A música continuava. Apesar dessas intensas melodias há muito tempo que se dedicava a encontrar o silêncio perfeito. Ela podia vir dos gemidos de Flor enquanto faziam amor ou ainda do famoso bater de asas de uma borboleta que depois podia provocar um terramoto. Contraditório? Claro que sim, nem de outra forma podia ser, porque o silêncio absoluto só estava no desconhecido e possivelmente mesmo ele estava prestes a deixar de o ser.

A sua cara, a cada dia menos disponível para os sorrisos de pacotilha, contorcia-se em risadas teatrais de coisas que até tinham piada mesmo que depois nem retirasse qualquer tipo de sumo útil para a sua sobrevivência.

Era parte do seu ser de pés assentes no chão encontrar a melhor maneira de se libertar do jugo tirano da estupidez entranhada nos outros, incentivada como coisa normal por eles, depois feita lei por seres que já haviam sido promovidos a algo pior e mais perigoso que obtuso.

Lembrava-se da porta que chacinada em pleno verso, com uma rima em riste pelo cu acima, solução que sempre arranjava na outra dimensão quando concluía que algo devia desaparecer do mapa.

Do homem tinha muito que dizer, nem sempre lhe agradava saber do Apocalipse para alguns se verem livres dos dispensáveis, mas das pequenas coisas quotidianas sentia sempre mais a falta. Não pode deixar de aplaudir a criação de mecanismos de defesa da Mãe Natureza por estados ditos inferiores. Sentiu força e vida nesses estímulos e mudou a sua forma de agir perante a aridez de ideias das pessoas que nunca tinham tempo para nada, que nem se lhe dirigiam como se ele fosse um ser normal.

Às vezes ia de propósito para a beira de um qualquer abismo e nunca tinha a coragem de rebelar-se contra o seu destino. Do outro lado anjos e demónios dançavam entrelaçados sem acentuar as diferenças irreconciliáveis. Era-lhes indiferente o destino dos homens modernos, apenas queriam divertir-se destruindo tudo, pondo tudo contra todos, culpando a inteligência de uns pelo fracasso de quase todos.

Os dias eram duros apesar de ter tudo, os pecados chegavam-lhe com a urgência com que necessitava de oxigénio e nada disso era compensado com qualquer um dos poderes revelados.