domingo, 6 de novembro de 2011

118 aqui ou em qualquer parte


Eram tantos anjos e demónios que um simples espirro provocava uma manifestação entre eles. No fundo não havia diferença, todos combatiam algo e não tinham vontade própria suficiente para contrariar os seus amos omnipotentes.

Arturo tinha consciência de que se alguma vez se materializasse a sua tendência espiritual ela levaria a fanatismos, à radicalização brutal que os outros dois tanto apregoavam: o Apocalipse.

Juntou-se aos outros 71 peregrinos e partiu de novo numa cruzada de sangue e morte pela purificação da indiferença generalizada.

De vez em quando fugia com Flor para os confins do Universo e possuía-a furiosamente iluminando as trevas espessas de um espaço rarefeito de vida. Outras vezes amavam-se no meio das multidões abstractas, berrando no seu prazer animalesco de alegre selvajaria. Como eram fisicamente invisíveis, as pessoas sentiam alguma centelha de vida interior vinda do nada, olhando estupefactas para dentro das almas vazias de quem se atravessava à sua frente. E riam-se, sendo atropeladas sem se darem conta. E paravam de lamentar uma sorte sobre a qual não tinham opção nem força para mudar. Esta também era parte da força da sagrada loucura que ninguém podia admitir, embora o soubessem, apenas porque eram reprimidas ao ponto de se esquecerem da sua simples função de viver.

Ainda havia outras vezes em que na outra dimensão todos se materializavam, vivendo as vidas normais que tanto ansiavam, no deboche com que tanto sonhavam, na indiferença pela opinião do próximo que tanto apreciavam. Eram estes momentos de aproximação à humanidade que os fazia sentirem-se vivos, esquecendo as doses infernais de comprimidos da outra dimensão. A droga daquele lado limitava-se a disseminar o poder de ser feliz, a distribuir equitativamente o lucro brutal que cada um retirava do estímulo pela sua própria auto-estima.

Em qualquer parte era possível sorrir, fosse na casa do Lúcifer empedernido ou do Deus errante por parte incerta. Melhor seria que nunca mais tivessem que levantar voo para destruir ervas daninhas em vez de aniquilar o veneno que as fizera florescer em terreno fértil e produtivo.

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