sábado, 4 de setembro de 2010

037 o sangue de um povo triste

Um dia, ao despertar, deu-se conta das novas cortinas vermelhas, algo que antes apenas aparecia em sonhos. Talvez pelo avançar da madrugada, da breve chegada do amanhecer e das rotinas a que se sujeitava diariamente não lhes deu a devida importância. Dirigiu-se à janela para ver a Lua mas deparou-se com o vazio. Se seria absoluto não o sabia, apenas agarrou o peito com medo que o coração deixasse escapar as suas batidas metódicas e recuou.

No suposto prédio que deveria estar em frente, nada vislumbrava, outro homem recuava perante a ausência de tudo. Ambos soltaram lágrimas amargas de uma dor por qualificar. Porventura seriam mega-estrelas devidamente empacotadas em cromos a colocar em qualquer posterior anedotário se a dor não se intensificasse a cada segundo que passava. Cerrou os olhos e pensou na situação mais absurda possível. Em poucos segundos deveria sair um sorriso de incandescente glória que queimaria possíveis demónios, porém o que se passou foi um fenómeno de junção de partículas, aparentemente inclassificáveis , que foram tomando a forma de um ser humano. Do outro lado apenas gritos lancinantes de uma dor atroz que lhe entrava pelos ouvidos dilacerados a dentro. Só que nada fazia, estava em absoluto delírio com o que via nascer, mesmo em frente a si.

De repente tudo se desvaneceu, voltou de novo à janela e via hordas de pessoas caminhando sem destino. Alguns sangravam dos pés gastos de tanto andar. Algumas lágrimas em doses mais abundantes formavam um rosário de frustrações que aglutinava um cada vez maior número de insectos. Este estranho fenómeno foi-se multiplicando em volta do charco original e alguns transeuntes foram caindo, desamparados, numa morte de contornos dantescos. Estava assim anunciada a chegada de Xarquiel, um demónio que crescia no sal das lágrimas, duplicando os sentimentos de dor em seres que viviam da aparência de felicidade desguarnecida da intensa vontade de mudar o mundo por um qualquer ideal válido.

Dando-se conta do intenso mal-estar que aumentava na sua rua fechou a janela e refugiou-se atrás das cortinas vermelhas. Lá fora todos se viravam para aquele edifício antigo e gritaram a plenos pulmões até rebentarem as cordas vocais, um por um. Tudo se passou em menos de meia-hora tornando-se Xarquiel suficientemente forte para partir em busca dos outros demónios, levar-lhes as coordenadas exactas do ataque final e angustiar até à morte todos os incautos que encontrasse pelo caminho.

Entretanto um terramoto de grau nove na escala de Richter destruía uma capital europeia. A morte andava em festa pelas ruas.

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