segunda-feira, 18 de outubro de 2010

042 cais da infância

Atrás da porta estava um desejo tornado realidade e os olhos iluminados da mãe não faziam crescer mais ansiedade na família, quase recuperada do susto que ela lhes havia dado. O ser precioso que dormia junto ao seu peito tinha cabelo farto e a cara enrubescida do anterior calor do ventre materno ia sendo substituída por uma tranquila expressão imbuída de paz, muita união e sorrisos de esclarecedora felicidade. Uma mãe que se preze não consegue ver outra coisa num filho recém-nascido.

Os primeiros anos foram de manifesta concretização de sonhos, como se o dia apenas seguisse o rumo natural até à rua onde a vizinhança sempre se perguntava porque estava aquela janela sempre iluminada. Era-lhes explicado, mas no dia seguinte voltava-se ao mesmo e assim consecutivamente, ate à náusea.

Após alguns anos de insistente loucura, a pergunta deixou de ser feita porque a luz se apagou e a janela se tornou indistinta. O mundo daquela pequena rua voltava à normalidade e ele passava a ir à escola.

A professora sempre lhe açoitava o rabo, não por ele não saber ou evitar participação activa, mas tão somente para descarregar as frustrações da falta de infância, razão pela qual era venerada pelos grupos de pais, que advogavam uma palmada no rabo que a alma também progride, não apenas o corpo ou muito menos um efémero orgasmo.

Cresceu entre palmadas e promessas, sem grandes conversas e aninhado nas histórias mirabolantes que lia lá nos confins de sua casa, onde frequentemente havia uma porta que dava a outra dimensão. Foi num desses delírios que descobriu um mapa, já antigo, acompanhado por algumas anotações pouco inteligíveis. A espaços conseguia decifrar o seu nome, mas o raciocínio bloqueava para dar lugar a um branco espesso que impedia de ver mais além.

Experimentava uma sensação de pura dor, mas era absolutamente irresistível a tentação de chegar mais longe, alcançando o zénite das emoções, algo apenas possível pelas dicotomias de personalidades distintas sem que ao princípio conseguisse sequer dar-se conta disso.

O equilíbrio surgiria mais tarde quando começou a sonhar com uma dimensão muito para além da mera existência física. A vida seguia normal durante o dia, com as vitórias e fracassos costumeiros de um ser banal, mas assim que fechava os olhos desvendava-se mais uma peça do seu intrincável puzzle pessoal.

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