quinta-feira, 25 de agosto de 2011

111 no rumor destas casas

As ruas esvaziaram-se, como se as almas se tivessem entendido e se escondessem dentro das casas a vibrar dos pecados sujos de cada uma. Algures no planeta algumas dessas almas juntavam-se com os seus invólucros para lançar de novo o caos.

Sem a mais pequena ponta de remoroso por não estar a lutar pela salvação do mundo, zelando pelo equílibrio entre dimensões, Arturo sentou-se em frente ao portátil enquanto procurava o conforto de alguma mensagem obtusa, amor assolapado ou vídeo para sorrir de alguma desgraça desembutida da imaginação natural de algum génio. Sim, ele tinha os seus ídolos, sem ter pés de barro ou permitir-se à humulhação dos rumores infundados transmitidos pelos inúteis do costume.

No rumor destas casas as almas ainda por perder adensavam a vontade de enegrecer quem fosse contra a necessidade de voar sem sair do mesmo sítio.

Arturo apenas teclava furiosamente as simples tentações a que um homem não tem que fugir. Nem sequer pensava em Flor ou na vida que queria ter com ela, longe das dimensões fantásticas que apenas serviam para acentuar os desiquilíbrios entre as forças cósmicas ou a decisiva importância de um átomo desgovernado.

Numa noite atípica pensou, sentou-se em frente à televisão enquanto o cão de uma vizinha uivava cada vez mais alto. Estava preso em arames enquanto a velha dona fodia com jovens recém-casados para poder manter a casa. Era um espécime nojento que haveria de liquidar quando pudesse. O cão não tinha culpa, nem Arturo tinha tinha a cabeça suficientemente fresca para saber que com um mero estalar de dedos podia fazer desaparecer da face da Terra aquelas aberrações andantes. Por vezes sentia-se definhar no meio de um conceito diferente da vontade de amor e sobretudo sentir que era sublimada pelos sentidos apurados, subjugando a líbido e amputando a possível harmonia visível em pequenos artefactos, que mais não eram que a felicidade, quase sempre utópica, uma espécie de Mar Vermelho sem passagem para os justos, a morte e o desespero.

Olhava para o relógio do seu coração tentando adivinhar quando lhe chegaria o verdadeiro cansaço. Por enquanto a felicidade resumia-se a amar Flor entre montanhas de loucos sem interesse por nada.

Olhava de frente para a televisão enquanto explodia mais um reactor nuclear. Apenas uma vítima da falta de arrefecimento adequado, que os envolventes iriam pagar bem caro com o corpo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

110 noites abertas para a loucura

Mas quando as massas não se educam para que exaltem o seu interior, constituído por seres únicos com diferentes vontades, há a natural tendência para que alguém sobressaia impondo a natural necessidade de subjugação dos demais, sempre em nome de um bem comum que quase sempre não passa de mera retórica.

Arturo, Flor e todos os peregrinos declararam guerra total a este estado de coisas, porque cada um deve ser portador de uma ideia de felicidade que não prejudique os demais.

Todos sabiam das imensas mensagens subliminares que induziam a educação civíca do comum dos mortais, porém como era um dado que se sabia estar enraízado há demasiado tempo, encolhiam-se os ombros e seguia-se numa espécie de descrença abafada pela necessidade de sobressair com balelas, artefactos absurdos exteriores ao âmago de cada um.

A tarefa estava a surtir um efeito perverso. O mundo já tinha estado á beira da destruição total e a terceira via dos apenas preocupados em buscar a sua própria felicidade, sem interferir com os desejos diferentes de cada um. Era apenas um conceito de vida que parecia estar a ser convenientemente manietado.

Arturo escondia-se bem das investidas de Deus e de Lúcifer, da tentação e da expiação do pecado, mas tornava-se impossível conter a infecção generalizada a que estava a ser sujeita a humanidade. Ponto assente era o que circulavam boatos que haveria por aí um bando de mal-feitores que tinha  o dom de perturbar a ordem espiritual das coisas. Como se descobriria quem eram? Provocando um novo holocausto, assumindo a necessidade de destruir toda a cultura que a ela estivesse ligada. Não era fácil fugir a isto tudo, mas fazendo uso dos poderes que ia descobrindo resolveu olhar para dentro, declarando guerra os vícios mais perniciosos de cada um dos seus guerreiros.

A função provocou o espanto de alguns visados e deu-se uma cisão grave quando se descobriu o informador que passava para o Senhor dos Infernos toda a documentação relativa a planos de exterminação do mal. O fim deste traidor foi a morte por decapitação, as consequências da libertação da sua energia negativa, um acesso generalizado de loucura que afectou todos à volta, enquanto esta não assentou noutro corpo pronto a viver.

109 restos do verão

Sem loucos e sem peregrinos, apenas a constatação que o mundo se perderá no meio das invejas mesquinhas de humanos que tudo têm, excepto, a capacidade de transformar algo simples na felicidade alheia.

Sem alternativas ao degredo mental a que todos estão sujeitos, contra o que alguns lutam, seja através da sua própria infelicidade ou dos químicos induzidos, os restos de dignidade que ficam não serão suficientes para suportar a indiferença a que a falta de tempo leva. Seria bem mais interessante fugir pela via do voluntariado, das pequenas falhas que juntas serão piores que um furacão. Haja desejo, momentos intensos que façam parar a espiral de destruição do que abriga. Pulverização dos malfeitores é o que urge. Sem que os pais ou as mães tenham que sentir orgulho ou desgosto, apenas a natural tranquilidade de sentir que todos os filhos seguem o natural caminho da sua acidentada espiritualidade.

Apenas restos de um tempo que acabou sem que tenhamos feito algo para o salvar. Não é que se possa sentir saudades da inveja e mesquinhez dos seres humanos, se ela varia apenas se deve ao dinheiro e aos resquícios de uma educação quase sempre desiquilibvrada por falta dos conhecimentos precisos.

Arturo tinha momentos em que a cabeça quase explodia. A informação era demasiada e as vidas, passadas e futuras, pareciam juntar-se numa só, forçando a abertura das portas que desuniam os Universos paralelos. Teria sido melhor que o seu pai não tivesse voltado da guerra para os braços ternos da sua mãe guerreira?

É possível que o destino seja uma simples brincadeira dos deuses, uma aposta suja em que uns são mais fodidos que os outros, em que a perversidade muitas vezes é defeito mas em outras tantas ocasiões motivo de aliança, sempre em função do vil metal.. 

Sendo o ser humano feito à imagem de Deus daí se entende a omnipotência como uma estupidez, motivo de guerras e mortes sem sentido.

Lá na outra dimensão onde guerreia o Bem e o Mal, apenas procura assentar as poeiras e permitir que os humanos se assemelhem à aparente calma da natureza que os rodeia. Entendendo-a, é certo que se poderiam gerar muitos mais entardeceres à beira-mar sem medo que um tsunami repentino os engolisse.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

108 o silêncio da vida

Era já raro o dia de silêncio, se bem que entre as inúmeras passagens entre dimensões se atropelassem almas pouco mais que virgens, ainda delirantes com as consequências graves provocadas pelos humanos ao meio ambiente.

Levantavam voo assim que tomavam posse dos seus poderes, especialmente desencantadas com o imenso trabalho que sempre lhes parecia uma maldição. Aterravam e eliminavam um a um os profundos preconceitos, tremendamente enraizados em sociedades decrépitas no sentir, no evoluir e na simples vida que não sabiam enfrentar.

Eram trabalhos em silêncio. Levavam vidas inteiras a mudar um simples hábito e na realidade apenas passavam alguns minutos. 

Claro que não envelheciam, fora-lhes dada a dádiva da eternidade para alcançarem o apogeu da terceira via. Nem o Bem, nem o Mal, apenas uma férrea vontade própria baseada no respeito pelo próximo, sem que fossem obrigados a viver sob o jugo de leis castradoras que apenas serviam para desviar o pensamento humano daquilo que realmente lhe interessava.

A questão que se punha era a de reeducar os gostos das massas, mostrando novos horizontes às definições há muito tidas como intocáveis, já nem sequer eram pensadas quanto mais postas em questão.

Mesmo os resquícios de uma civilização supostamente moderna tinham que ser dizimados para que não fossem tomados de assalto por demónios ávidos de vingança pela eternidade de sofrimento a que tinham  sido condenados.

Em contacto com a natureza, banindo para sempre a praga dos fogos florestais havia a possibilidade de convocar todos os mitos benéficos à mudança fundamental.

O silêncio era muito mais que apenas ouro, a mera cumplicidade de olhares funcionava como uma linguagem, assim como uma mera nota musical podia ser uma frase que mudaria de significado consoante o som do ar, o dia ou a noite, a luz ou as trevas. Não era possível, na dimensão em que o Além tinha quem o combatesse, tornar normal aquilo que de maneira alguma podia ser Universal.

Era certo que nos intervalos da extrema luz ou profundas trevas algo provocasse a diferença fundamental e Arturo tinha papel fulcral nesse desiderato.

domingo, 21 de agosto de 2011

107 estações de mortal alegria

Os momentos da mais terna alegria passavam-se nos dias em que, mero humano, podia beijar Flor na sua forma despojada da grandeza dos mitos. É certo que era fácil ser interrompido por alguma das filhas, sobretudo a pequenita Mary, sobrepondo-se um natural pudor para algo que não queriam que ela imitasse. Ainda era mais retemperador sentir-lhe aqueles pequenos pedaços de paraíso que só uma mulher como ela podia oferecer, entre sessões de ciúme e sedução selvagem que tendiam sempre a terminar em criativas sessões de sexo, sempre com algum grau de preocupação por não estarem sózinhos.

A alegria era real motivo de inveja, já nem os que passavam fome se contentavam com o seu pão gasto e bolorento, antes lhes agradava mais invejar o pão de vários dias mas ainda sem a cor característica do bolor do vizinho a quem sorriam. Digladiavam-se as consciências por nada, como se o nada fosse a real solução dos problemas das suas cabeças de ínfima capacidade intelectual.

Flor apenas pensava numa maneira de realizar os sonhos das suas filhas, já adolescentes, porém crianças sem o verdadeiro sentido da realidade, pelo que viviam num reino encantado de fantasia, a possível, sempre destroçada pelas confusões geradas pelos adultos que as rodeavam.

Mas a causa era sempre mais forte, esse empecilho de ter de ser ele a acabar com os males do mundo, aos poucos, com a ajuda de mais 71, nem sempre bem preparados, às vezes sem sequer saber o que fazer junto de um mestre que nem sempre respeitavam como tal. Porém, na junção de todos os fluídos vitais desencarcerados de almas perdidas, estava uma parte do segredo. Qual segredo? Em estações antigas, programando frio e calor, seria possível uma surpresa. Assim , à beira  de um colapso, o mundo não tinha tempo para absorver as mudanças incutidas pelos Peregrinos da Sagrada Loucura.

Outra parte do propalado segredo era o abandono ao sexo desenfreado pelos peregrinos adultos. Livres de maldições ou bruxarias entregavam os corpos sedentos em plena terra com aroma a chuva recente. E gritavam, tão alto e tão desvairadamente que as entranhas da Terra entravam numa estranha convulsão.

Era bonito de se sentir assim o amor, a contemplação das artes divinas em meros mortais, de repente elevados a salvadores do que não tinha salvação.

106 dor sem fim

Não era um julgamento qualquer, nem sequer havia a noção exacta se aquele grupo de juízes estava ao serviço do Bem ou do Mal. Notório era ver que a capacidade de utilização cerebral deles encontrava-se bem acima de qualquer noção de realidade já vivida ou até mesmo pensada.

O amargo de um café e a voz doce de Flor eram duas das vontades que tinha naquele momento. Os gritos eram elevados ao expoente do absurdo perante a absoluta impassividade que os supostos justiceiros deixavam transparecer.

Estava agrilhoado, mas não tinha cuidados especiais, por isso viu a agonia a soltar-se dos seres tomados pela imbecilidade. Às vezes a dor era tanta que o diagnóstico era declará-la crónica e atirá-la para os braços infectos de Lúcifer para este se comprazer na sua eterna tortura, com renovada e lancinante dor. 

Mas não era a omissão da agressividade do bem total que eles buscavam. Dentro de um manto negro que ofuscava as suas caras iam escapando conceitos com que Arturo fora brindado nos últimos tempos, contemplações de desejo e comiseração muito para além da mera lei divina ou da rasteira tentação maléfica do senhor dos Infernos todos, sem excepção.

Só não lhe era permitido fechar os olhos, como se soubessem que poderiam ser apenas uma mera alucinação e perder a maior de todas as conquistas.

Foram muitos dias de dor sem fim. Arturo nem sequer sentiu piedade, ódio ou algum sentimento de aproximação pelas almas que se perdiam por ali. Até chegar o seu momento. O silêncio sobrepôs-se, não mais se cantou vitória ou se abriram as comportas sujas do Inferno, apenas silêncio e um manto branco de luz estendido até ao Infinito. Daí nasceu um círculo que foi envolvendo Arturo. Um a um, os juízes que o compunham foram destapando a cara, sendo consumidos pela luz após a desnudarem por completo.

Passaram-se anos até restar apenas um dos juízes implacáveis do destino das consciências. Ao desnudar o rosto sorriu-lhe. Sem abrir a boca, apenas dançando ao som de uma bachata nascida do meio envolvente, compondo-se de cada átomo para dar a conhecer a Arturo uma das possíveis contemplações de um mundo dominado pelos Peregrinos da Sagrada Loucura. Era Etérea, a filha mais velha de Flor, transformada numa deusa para além das belezas contadas entre as divindades inventadas.

sábado, 20 de agosto de 2011

105 o frio à volta de tudo

Um dia, após se perder nas chamas intensas vindas do frenético corpo de Flor, Arturo voltou a fechar os olhos. Quando os abriu, o calor transformou-se em frio. Voltou a fechá-los e quando os reabriu a luz intensa transformou-se num negro profundo. Voltou a fechá-los, quando os reabriu sentiu-se a sufocar.

As mãos tocaram num pedaço de veludo, negro como a morte desconhecida. Fechou os olhos, sem que por uma vez na vida não sentisse arrependimento de chamar tanto pela morte. Reabriu-os e tocava  uma canção lúgrube da intensa falta de um mero amor, o próprio. Era um sentido negro da vibrante panóplia de cores alternativas de Nick Cave, depois do burro, sem avistar o anjo perdido em afazeres intermináveis.

Sentiu uma mão de criança, mas não de criança pequena. Uma voz sussurrava-lhe uma melodia apaziguadora ao ouvido. Se essa era a sua salvação, pois não mais a largaria. Começou a subir, sentindo a madeira a estalar e a melodia, em duplo sentido, a desaparecer. Fechou mesmo os olhos e continuou a sentir o mesmo. A terra passava-lhe pela boca fechada, pelas narinas castigadas, pelos olhos fechados do medo indescritível. Ainda não sabia muito bem porquê. Subiu o que lhe pareceu ser uma gigantesca porção de montanha. 

Quando a sua mão direita sentiu o contacto de algo diferente de terra, pensou estar a entrar noutra dimensão, sentiu-se enregelar. Ao avistar um pouco de luz apercebeu-se que era Margarida que o puxava. E mais ao longe a sua mãe, Flor, largava uma lágrima que convulsionava um sítio qualquer algures no planeta.

Quis sorrir, mas a jovem desapareceu e ele ficou ali numa espécie de purgatório que mais não era que o exacto centro que dividia as duas dimensões por onde ele se passava sem qualquer tipo de entraves. Nunca se vira naquela situação e quase que não conseguia mover-se, pelo extremo frio que se entranhava em cada poro do seu ser.

Sentiu-se agrilhoado, enquanto uma espécie de tribunal decidia a sorte de umas quantas almas à mercê dos desígnios fascizantes do Bem e do Mal.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

104 voltemos a dezembro


A distância temporal não é muita e as recordações costumam ser de acalmia, tanto nos desejos de radical mudança, como na apatia que anda em tentativa constante de imiscuir-se nos corpos incautos de pessoas já gastas antes de sequer começarem a viver.

Hoje estou aqui, suspenso no ar, observando o meu corpo, imbecilizado pela constante ingestão de odores e sabores que nem maléficos são. Quer dizer, em ambiente mais íntimo, com aumento do desejo e animalesca vontade de foder, o veneno entra sem que me dê conta, mas não é o caso, apenas sinto o corpo sem reacção aos estímulos, ao pensamento depravado incutido pela alma que o faz viver até se interromper o fluxo, quer seja de forma natural ou forçada.

À volta apenas consciências dominadas por uma imbecil vontade de alcançar um mínimo de estupidez. Os seres riem-se, de algo com o conteúdo próprio das suas cabeças, como se fossem galinhas secas à beira da faca que lhes cortará, por fim, o pescoço.

Apenas sinto desprezo por elas, uma tristeza tal que me apetece voltar a Dezembro e não sair daquela cama com vista para as cortinas vermelhas, onde um dia me abracei a Flor com o suor abundante a transferir-se lentamente para o seu corpo excitado.

Esquecer este meu martírio de ter de andar entre dimensões e ter outro ataque de febre só para ela cuidar de mim enquanto humano indefeso, abandonado a uma estupidez insana, porém saborosa.

Sabe-me mal estar acima de mim mesmo, quando vejo os juízes a preparar a morte das consciências limpas dos pecados embutidos à força dentro de cada um. Olho para todo o lado e de nenhum lado os olhos faíscam de vida, como se o Inferno sem chamas dominasse as almas em queda para um abismo sem fim.

Fecho e abro os olhos e a dimensão dos pecados não se altera, talvez fosse altura de saborear o prazer que o demónio há tantos anos a possuir-me, não me deixa celebrar: a Ira.

É possível que ainda tenha que voltar muitas vezes ao meu corpo, amar Flor e as suas encomendas criadas com tanto carinho. É natural que a missão de salvar as almas desses julgamentos sumários, que para eles estão preparados, seja a minha missão final em qualquer das dimensões.

103 ameaçadora volúpia


A forma de comunicação nem sempre era a mais eficaz. Esperando reacção obtinha silêncio e lugares comuns, a natural superficialidade de gente a quem lhe custava entender tanta apatia. Decerto que antes de descobrir o caminho peregrino era visto da mesma forma pelos seus antigos pares humanos. Depois apenas as memórias de uma volúpia doentia o faziam olhar de perto para o fundos do mar Egeu e tentar encontrar lá alguma divindade grega desagradada com o tenebroso estado de coisas.

A volúpia desencantou-a em todos os peregrinos que o acompanhavam num violento amanhecer de feitios conflituosos, inteligências desavindas com o vulgar ou com o dito erudito.

Se sentia o doce aroma de Flor no ar, dava-se vencido por instantes, que gostava de pensar serem eternos, nos intervalos do amor e das sementes lançados no corpo dela com o único propósito de procriar. Deus devia estar contente, mas Arturo não era um fiel depositário das premissas pelas quais Este se regia, apesar de não serem tão rigidas como as declamadas pelos sacerdotes tiranos que apenas ateavam fogos e incentivavam guerras com as suas retrógadas posições acerca do livre pensamento, do alegre bailado de fluídos entre homens e mulheres sem ser com a firme vontade de procriar.

Talvez por isso sentisse uma especial atracção por aquelas mulheres que não podiam exibir o corpo como bem lhes aprouvesse, pela interpretação machista de leis impostas pelo homem à revelia da entidade divina que se cansara de tanta prepotência. Sim, era claro esse desconforto perante a tirania reinante na cabeça de cada um, consubstanciada com religiões deturpadoras dos princípios básicos e necessários a uma vida sã e feliz.  Sentia que por ter acesso a muito mais que 10 por cento das capacidades cerebrais, ter mais facilidade em transformar essas fraquezas em desejos de prosperidade, sem riscos de cansaço, de perseguição ao mero acto de respirar, ao menosprezo dos ideias de cada ser que manifestasse claramente ser útil para si próprio, porque só assim se podia permitir olhar para os outros encontrando a necessária grandeza de espírito.

102 porque não te havia de contar?


A vida dentro da dimensão normal era um perfeito embuste, nem aprofundava relações, nem extravasava ódios. Sentia o normal fluir dos dias como uma rápida aproximação da lápide que registaria durante alguns anos a sua fútil passagem por este mundo. Não que tivesse como supremo desejo passar-se de vez para a dimensão do esquecimento, mas acentuava-se essa vontade de se libertar do demónio realmente instalado na sua cabeça. Passara a ser crente? É possível que a indiferença, o mundo e as suas abjectas contemplações o levassem a procurar abrigo no suposto criador de todos os Universos.

Fechava os olhos e às vezes não sentia ninguém a usar a inquisição das consciências como forma de castigo para fazer sobressair as suas imundas necessidades de foder sem querer saber do prazer.

Abria os olhos, olhava mesmo para trás e já não via o outro lado da montanha e o sexo com prazer interrompido, apenas a imensidão do Universo com uma brecha cada vez maior na parede negra, supostamente inviolável, que o mantinha fechado aos olhos curiosos das divinas entidades, dos demónios enraízados, da indiferença generalizada.

Contava com Flor para lhe amenizar a profunda ansiedade das passagens entre dimensões e sempre que um deles viajava sozinhos, algum furacão de grau 5 destruía os sonhos de vida normal da gente simples que antes vivia no seu caminho.

Voava, juntava-se bastas vezes com os outros peregrinos, onde se encontravam seres que apenas lhes eram convenientes, uma perfeita peça de caça para abater após perseguição impiedosa. Ainda assim cumpriam os objectivos de extermínio da estupidez, da opressão das ideias livres, dos espíritos desenvolvidos.

Umas vezes sentia Deus a apaziguar-lhe a alma com a tranquilidade pura de um qualquer paraíso brotado do coração. Outras vezes apenas Lúcifer a fazê-lo caminhar alegremente sobre os pedaços de corpos da gente que apenas embrulhava a sua existência num manto de falsidade, âncoras que afundavam vidas em vez de manterem os navios seguros em alto-mar.

Era apenas um mero homem, superficial para quase todos, mas a quem brotava do peito a imensidão de amor e desejo própria dos predestinados.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

101 o gosto deste vinho

Ao olhar para os quadros expostos no Louvre acentuava-se o prazer pela demonstração do afecto sublinhada em algumas obras. Era como se, ao passar, elas chamassem e o envolvessem dentro da sua história, tão previsível que às vezes não mostrava a verdadeira razão pela qual tinha sido feita. Nas masmorras da imensa galeria de arte também se avivavam conceitos envoltos em corrupção, pelo que importante era destruir tudo o que era moderado.

Tudo isto seria motivo de preocupação e desenvolvimento no sentido de alguma trama se não fosse o caso de mais um ano cristão estar a acabar e a consequente paranóia por finais de mundo e envolventes invólucros humanos estarem finalmente em riscos de exitinção. A viagem pelas torturas mentais presentes na cabeça e sobretudo nos corpos dos financeiramente limitados a servir a minoria de sacanas que impõem as leis e o seu cumprimento, era apenas a única forma de se afastar de um demónio que para sempre o afectaria se por acaso se deixasse levar pela fúria destruídora da Ira.

Nestas alturas sabia-lhe bem degustar um bom vinho na companhia de Flor e lembrar-se que a ideia dos 7 demónios lhe havia sido demonstrada na inocência de Tamara, por vezes provocadora do embate entre as placas tectónicas no outro lado do mundo, enquanto soltava a sua fúria, algo que assustava Arturo e Flor, quando a petiz apenas se enraivecia pela ausência desgovernada de um pai pouco gracioso na forma como se afastara.

Algo prendia as pessoas, não as deixando demonstrar o seu real valor. A inocência de Tamara seria a melhor forma de valorizar uma qualquer capacidade intrínseca a qualquer um disposto a aceitar-se a si próprio.

O único problema era a sua tenra idade, apesar da inteligência muito acima da média e da forma expedita como se desembraraçava de situações potencialmente motivadoras de depressão. O problema era o do costume, as ideias instituídas, os conceitos imutáveis do bem e do mal podiam, através dos seus mensageiros, corromper essa pureza de ideais.

Para Arturo era cada vez mais clara a existência latente dos chamados 7 pecados mortais em cada um, por sua vez dominados por um demónio específico. Libertar as pessoas desse terror além-vida fazendo-as ver que nem tudo o que é mal-feito nos enfraquece ou torna pecadores, é mais importante que temer a qualquer entidade oculta.

100 sombra entre as sombras

Chove, mas não faz frio. O amargo do café ainda faz sentir um pouco da vida antiga, dos desejos e das falhas de memória para o perdão que mais parece humilhação.

Consciente do Céu e do Inferno viaja incólume até à brecha existente no fim do Universo, provando ao vácuo e à desgraça do silêncio espacial que o finito é um pouco mais além.

Chove, mas não faz frio nem o francês decadente provou o que quer que seja com a sua definição divina de amor, porque apesar de Arturo ser a exacta fronteira entre o bem e o mal não deixa de ver as invenções mirabolantes do espírito humano passearem a sua soberba perante a desgastante compaixão, exclusivamente humana, vilmente despedaçada por um descendente imaginário dos hiperbóreos, o anti-cristo sem medo de símbolos, Apocalipse ou outros truques sujos na manga para enganar os seus antecessores.

Chove, mas não faz frio e as sombras dos incautos decifram-se num buraco negro quase sempre existencial, nem sempre lógico, quase sempre necessário para os que se movem nas sombras possam absorver a energia positiva circundante.

E os humanos seguem impávidos e serenos à beira de um abismo que julgam ser o Éden prometido, consubstanciam a indiferença pelo destino com os pequenos prazeres e pecados mundanos. Esta é decerto uma das pequenas premissas que convém manter, porque nem tudo está mal no reino das trevas, da indifrença emocional ao mal-estar provocado pela ganância dos humanos, cada vez mais despudorada.

Chove, mas não faz frio, entre os desertos onde os escorpiões alimentam uma raça de suícidas perante ameaças externas e uma terceira facção deixa de ser fonte de pesadelos para a necessária realidade.

Era mais fácil nem sequer tentar perceber o amor e o ódio, a fé ou a descrença, a protecção ou os maus-olhados. Bastava apenas abrir os olhos para as sombras envolventes, ver que se movem independentemente do dono e acabam por levá-lo por onde querem, até ao dia em que, de sombras, passarão ao infinito da morte, em negro constante. Ou talvez voltem quando encontrarem uma nova brecha no Universo finito.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

099 derradeiro beijo

Os fantasmas iam sendo expostos um a um consoante se aproximavam mais os índices do Apocalipse descritos nos livros. As almas penadas procuravam o melhor lugar para assistir à entrada das suas mais recentes congéneres. O desprezo ou a mais distinta crueldade seria a maneira como as receberiam.

Arturo apenas buscava o corpo de Flor para se saciar dos males da humanidade e expurgar todos os sentimentos negativos que pudesse ter dentro de si. Ele não sabia, mas debelar os males dos outros significava, muitas vezes, absorver toda essa carga destruídora que levava ao fim, mas não o do mundo que se regeneraria ainda com maior fulgor.

Tinham pouca privacidade e os olhares reprovadores de pessoas apenas preocupadas com os seus feitos de finitas virtudes. Essa exposição afectava sobretudo Arturo, que se deixava dominar por um estado de ansiedade que em tempos o fizera abandonar-se à loucura, deixando-a com a ajuda de anti-depressivos. Como era homem de paciência e voluntarioso, deixou-se abater por traições perpretadas por seres amados.

Não gostava das despedidas e por isso, pouco a pouco foi riscando do seu léxico a palavra perdão. Se alguém se quisesse suicidar que fosse digno o suficiente para não o intrometer nessas alhadas em que a parca utilização das funções cerebrais leva a melhor sobre as imensas capacidades de explorar novos horizontes. Bastava apenas ser mais egoísta e esquecer a pequenez de alguns propósitos menos claros que apenas embruteciam a mente.

Os momentos de amor carnal com a sua namorada eram os mais festejados no meio das conjuras e maus-olhados que lhes lançavam. O efeito seria apenas um instante porque o voo a que os dois estavam destinados não se comprazia com esses seres que nem para o lado sabem olhar, guardando as suas energias em fúteis tentações divinas, que, por isso mesmo, não chegariam a mais nenhum lado senão ao medo, à aniquilação pela ignorância, o tal Apocalipse em cujo anfi-teatro já se encontravam todas as curas e maleitas inventadas e posteriormente assoberbadas pelo ser humano, quase nunca ávido de viver sem ser a prejudicar o próximo.

098 esse tempo de crescer

Não posso olhar para trás e lançar um sorriso por mais terna que seja a situação. Um corpo não se satisfaz de recordações enquanto está apto a voos mais arrojados. É certo que consigo fazer as coisas bem com os pés no ar, a vontade noutro patamar e os resultados a aparecerem para estimular. O passado é que prende o crescimento de uma alma, apesar da aprendizagem e da egoística pose dos amigos que quase sempre o são no máximo para o franzir do sobrolho, encolher de ombros e pensamento abjecto do pobrezinho. Muitos há que ainda assim crescem, adornando as existências apagadas com sorrisos de vaga esperança em ter apenas algo mais do normal, sem que tenham de cair nas depressões do costume. Antes fosse mais simples abandonar os conceitos simples de vida segura e agarrar os tempos que correm, aquilo que se tem, o futuro imediato.

Na ganância pela sobrevivência o homem destrói-se, acumulando as riquezas erradas, masturbando-se mentalmente com as vãs promessas de vida feliz enquanto o aniquilam com malvadezas que ele não terá tempo de se recordar, apenas e só porque quem as provoca apenas tem na manga mais do mesmo, voltando a provocar esquecimento e assim sucessivamente até não restar outra solução diferente dos banhos de sangue e do medo avolumado pela incerteza de cada passo, dos conceitos bacocos que lhe deram não passarem de mero teatro em cujo palco os actores apenas apuram a arte de bem iludir.

Não tenho as esperanças apuradas, nem os desejos assim tão encravados, quero banhar-me num rio limpo da dor invisível que nos atormenta. Para isso tenho que arrancar as ervas daninhas, ajudar a aniquilar os que prendem a felicidade num fosso esquecido do Inferno sem chamas a que chamam vegetar em vida. 

Quero apenas ensinar ao mundo descrente que não precisam de Deus e Lúcifer para orientarem os seus medos, desejos e aventuras. 

Quero apenas estimular a loucura que é amar sem ser objecto da inveja e da cobiça por meras frustrações alheias. Se tiver que matar e ser sacrificado por esse bem maior, não hesitarei.

097 contos insuportáveis

Voltando ao drama anterior e às recordações banais que parecem repetir-se ad eternum a quem nunca teve capacidade para voar quando devia, apenas há a destacar as feridas causadas pelo gato de uma namorada antiga após experimentar queda livre involuntária após ver um pardal passar por ali perto do beiral da janela onde estava e movendo-se pelo errado instinto de um animal meigo e incompreendido saltou, mas nem por isso morreu. Se o caminho for esse então a janela de onde caiu o gato promoveu outro tipo de atitudes irreflectidas, próprias do egoísmo de quem roubou amor-próprio sem se dar conta do prejuízo alheio de quem lutava como cavaleiro armado contra moínhos velhos e sem história para contar. Além de frustrante torna-se uma traição sem perdão, nem um pouco de açúcar a adoça, apenas a nautral erosão das ideias que permite aos imperfeitos seres humanos darem-se uns com os outros.

Insuportável como a solidão programada, são os ciúmes, sobretudo sem que depois haja um festim dos corpos que não se saciam em almas alheias ou sem que depois haja um mero olhar ensanguentado de vida que anuncie o perdão pelas parvoíces elaboradas pela eterna questão da insegurança.

Arturo havia passado por essa intempérie de janelas quebradas de vida, onde hoje há memória, apenas de morte, com a sorte do renascimento e da verdade de fechar esse livro, viver e crer que há algo mais profundo que morrer em pleno mar Egeu.

Não deixa de ser irónico que muita da sua inspiração a tenha ido buscar às histórias rocambolescas das discussões que apenas serviram para desgastar, como se o atrevimento pela demonstração inequívoca de um egoísmo sem limites fosse promovida de imaturidade a instituição nacional, um pouco como tanta coisa que impede as pessoas de saberem o que querem.

Mas o tempo já não era só de lágrimas, nem de leituras num sofá onde ainda dá largas à preguiça. Havia que subir aos céus e contrariar a desgraça institucionalizada. Era uma missão, um desígnio imbuído apenas de verdade, cravado dos defeitos normais de quem tem um corpo para abrigar a alma, mas também uma forma de desprezar ao máximo o nacional fatalismo muito para além dos velhos do Restelo.

domingo, 14 de agosto de 2011

096 admirável amante

Antes de te chamar, confesso o meu amor pelos momentos em que me fizeste ver a vida como algo mais que uma mera lápide onde talvez nem fosse recordado. É certo que podia ter sido outra pessoa, buscar outro sentido para para amenizar as dores ambíguas do coração, aquelas que moem mas nunca se sabe quando matam.

Antes de te chamar estou para aqui a pensar porque é que já fui ao fim do Universo e vi esperança num buraco negro. É possível que o poder de atracção fosse forte, mas a vontade que me domina ainda o é mais, logo volto a cair lá em busca de algum desejo que ilumine a esperança lá escondida dentro do regaço de amantes que não sabem ser desavindos. 

Aposto que se puderes apanhas-me lá bem no alto na linha recta para o paraíso. Os complexos dos que nos rodeiam não serão fortes o suficiente para impedir a concretização de um beijo. Um mero beijo e um abraço que te solte as más energias e aí talvez passemos a parede negra do fim do Universo, soltando fluídos desencantados de uma felicidade sem precedentes. É possível que depois venha a crescer dentro de ti o rebento que nós seguiremos no futuro.

Antes de te chamar, hoje que não salvo o mundo e apenas espero pela tua voz apaziguadora, para que mundos encantados nos juntem depois de fechar os olhos, não é certo que os desejos acabem e as fronteiras desapareçam, mas a zona morta que guarda todas as potencialidades, essa será ressuscitada, elevada à mera condição de remédio santo para todas as fraquezas da alma.

Antes de te chamar e declamar a odisseia que nos envolve, pensaremos naquela viagem ao cemitério, imbuídos da vingança, caída na terra que cobre os apodrecidos de ninguém. Então poderemos sorrir, alcançando o centro da Terra, fazendo tudo girar ao contrário, acabando com os frustrados da enésima guerra mundial, sempre em nome da paz, do desejo de estar rodeado de cidadãos preocupados com o que os rodeia, mantendo uma harmonia vestida de odores podres que apenas fazem o hóspde ter vontade de terminar tudo.

Nem Deus, nem Lúcifer têm como saber que temos aquele tipo de amor indestrutível que nos assopra cvom força ao coração, abrindo alas ao verdadeiro amor-próprio.

sábado, 13 de agosto de 2011

095 quando tinhamos o mundo

Um simples beijo matinal era tudo quanto bastava para começar o dia, houvessem os desastres naturais e Apocalipses que houvessem, que aqueles lábios entrelaçados demoliam todas as energias negativas. Na altura do desejo ninguém queria saber se o mundo ia mudar ou não, apenas juntar os corpos num frenesim desvairado de fluídos em baile desordenado, os berros e as fronteiras desvanecidas do amor sempre em crescendo. O sexo era puro e duro sem a contemplação dos filhos de Deus feitos na cama com o Diabo, apenas encaixar o prazer descomunal sem que alguma frustração filtrasse a felicidade.

Quando tinham o seu próprio mundo até eram a personificação de uma vida normal, sem a mente prostituída ou os desejos corrompidos, apenas fluídos desgovernados entre os dois. Foi assim que se amaram no início, atrás das cortinas vermelhas, num silêncio abruptamente interrompido por gemidos de louco prazer. Possivelmente até teria sido por isso que o vizinho do prédio em frente se mudaria mais tarde, por não conseguir passar de um mundo virtual de frustrações em permanente descarga.

Lembrava-se desses dias e apenas com isso, já conseguia arranjar forças para dominar as fraquezas dos seus seguidores. O ser humano fora feito para se desentender sem que antes das desgraças fingisse sequer ter qualquer tipo de pena pela sua quota parte de responsabilidade pela desgraça entranhada no mundo.

Sabia que era o homem que fazia toda a diferença, insistindo em andar com os pés bem assentes no chão, para que todos os que o seguiam não esquecessem qual a sua proveniência e, acima de tudo, a razão pela qual lutavam para mudar o estado de coisas.

Quando o mundo se resumia ao pequeno espaço em que se moviam, tudo parecia de uma pequenez sem fim ao pé da sua rejuvenescida vontade de viver, amar e conjecturar acerca das imensas possibilidades que haviam em transformar o que os rodeava num sítio mais aprazível e sobretudo duradouro, desmentindo as proféticas desgraças anunciadas de tempos a tempos.

Ao mesmo tempo que enchia o peito de orgulho e analisava o infinito que se lhe deparava, dava passos sustentados rumo ao domínio do eterno bater do coração.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

094 irrecusável geometria

A melodia mudava consoante o desejo de cada um. Tanto podia ser um qualquer Requiem, como uma moderna cantora de voz melodiosa que encantava os humanos até os enredar na sua teia e os despedaçar consoante os pecados fossem mais ou menos graves.

Irrecusável era assitir à ordenada liquidação de seres geométricamente imperfeitos que apenas existiam para consubstanciar o dia do Juízo Final.

Ao longe apenas sensações de inquieto mal-estar, como se nem o mar acalmasse e um cantor de voz áspera e agressiva seduzisse pela qualidade brutal do encadeamento de sons provocados pelos vários instrumentos, voz incluída.

Era necessário ir buscar as poucas regalias existentes para que algo acalmasse. As regalias já se sabe em que consistiam, apenas tinha que decifrar o porquê de escutar tanta música em situações limite. Soava a lugar comum, a programa formatado, já visto inúmeras vezes, em interesseira prostituição mental que apenas ia desgastando a alma sem que depois soubesse se passeava entre dimensões em sonhos ou se era tudo assustadoramente real.

Viu-se de repente no topo da montanha, a tirar uma foto a Flor e às 4 filhas. Todas tiritavam de frio, apesar do Sol e do calor ser intenso uns quilómetros mais abaixo.

Nada conseguia ser normal, nem sequer a tentativa de decifrar pequenos pormenores que tinham ficado para trás em nome da salvação do mundo.

A promessa de uma nova vida, as mãos despedaçando artefactos vazios de sentido, tudo contribuía para o pesadelo, para a simples e duradoura situação da vida para lá de normal.

Havia sempre qualquer som que entoava no seu cérebro cansado de tanto batalhar, contra moínhos, vento ou absolutamente nada, talvez fosse apenas a mania da perseguição. É certo que voava e que conseguia exterminar doenças vulgares como a soberba, alguma perfídia e sobretudo falsos moralismos. Apetecia-lhe mais limpar a Terra do sangue sujo mais entrnhado em costumes que custavam a vir ao de cima, enquanto a estupidez engrossava fileiras e as mordaças dos fracos de espírito eram reforçadas por entre sorrisos. 

Apetecia-lhe usar a Cavalgada das Valquírias para outros fins, apesar de igualmente bélicos e sabia que nem o Inferno lhe estaria reservado, quer estivesse com as mãos sujas de sangue inocente, quer fosse justa a causa que levasse à destruição de seres uma irrecusável geometria.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

093 as nuvens da tua dor

Haiva alturas, na ressaca dos momentos cósmicos obtidos perto do infinito, em que a dor se sobrepunha, não através das lágrimas de Flor, mas acima de tudo da frustração de Arturo não conseguir salvar tudo e todos. O que ainda mais lhe custava a aceitar era ver a decadência acelerada dos seres que amava com todas as suas forças e não poder ajudá-los.

Ficou-lhe na memória a frustração de não ter conseguido trazer para o grupo de eleitos a sua melhor confidente, enredada num mundo alucinado em que apaziguava a dor dos outros mas tinha incapacidade permanente de apagar a sua. e nada fazia para melhorar, para entender da mesma maneira que ensinava aos outros que a vida é um lugar onde apetece estar, sobretudo com quem se importa.

As nuvens da desgraça eram parte activa do combativo Arturo, parecendo escurecer a sua pele à medida que os desejos dos outros caíam por terra. Era apenas a vingança de Deus que tinha sempre que sacrificar algo para provar que se era temente a Ele.

Puro engano, pura desgraça, enquanto num passado recente alguém se enforcava, ao passo que na rádio do presente passavam canções de Natal. Podia ser ele para quem o Natal eram apenas momentos em que alguém descarregava a sua frustração, apenas reveladora do sentido obtuso daquilo que é respeitar a paz de espírito dos ainda impolutos da corrupção mental a que todos são sujeitos.

De dores, mas também de muitos amores e alívio por ainda assim poder ajudar Flor a sorrir, acto petrificador para anjos vingativos que depois Arturo desfazia em cinzas espalhadas por um vento repentino.

A dor convivia com a desgraça, mas também com a necessidade de expurgar as ervas daninhas da alma que sempre impediam de ver mais além.

Algo que iria mudar era a extrema sensibilidade à ausência, sendo gradualmente substituída por uma nova droga, ainda exerimental que ainda carecia de suficientes experimentações em cobaias desprevenidas. Em túneis secretos eram capturados os guerreiros do bem e do mal era submetidos à prova inequívoca da sensibilidade total, até a perderem por completo.

092 divino vinho

Há dias em que não levanta os pés do chão, da aventura passada entre dimensões desconhecidas, dos preconceitos mesquinhos incutidos por milhares de anos de ensinamentos errados, apenas potenciando o pior de cada um em vez de promover o minímo de respeito.

Há dias em que apenas se encontram para degustar um divino vinho nascido de uma colheita imaginária, de um desejo concretizado pela força da Vontade, entretanto assassinada.

É claro que ficaram as reminiscências, os objectos precisos que cortarão a fundo todo e qualquer animalesco ensejo de deturpar um simples desejo de beber um pouco de vinho, imaginário na génese, verdadeiro no sabor e na dedicação com que é bebido.

Poder-se-ia pensar que um eleito passaria ao lado dos simples prazeres da vida, mas não é essa a premissa da sagrada loucura, ou nem loucura seria se não se permitisse uma valente carraspana.

Sim, no intervalo da salvação do mundo, há dias em que não levanta os pés do chão, algo que combina com o seu lado meramente humano e vão os dois degustar um qualquer néctar, valioso como momento lúdico em que apetece mais fugir que o mero desencanto.

E por vezes nem se lembra do momento em que perdeu a consciência, apenas que as dores, a mera responsabilidade de cuidar do futuro desaparecem sem deixar rasto, como se assim abrisse a mente ao encontro da de Flor e fizessem amor até à exaustão, assim, perdidos de bêbados, de amor ou pura excitação. 

Que interessa a vida sem o pecado, a simples necessidade despir o corpo onde quer que seja e abandonar-se à luxúria como se mais nada importasse no mundo?

Essa era uma das múltiplas razões pelas quais os defensores radicais do bem e do mal assopravam a desgraça para cima dos humanos. Nada podia ser sagrado se feito pelas leis da liberdade total. Ou Deus ou Lúcifer é que tinham o poder absoluto de poder brincar assim com o fogo maldito.

Entretanto, imaginando o amor nos confins do Universo, com Flor, foi lá parar, de repente. Fizeram sexo, desenfreado, gemendo até à exaustão dos corpos e uma leve abertura apareceu na parede negra elevada até ao infinito. Afinal o impenetrável era apenas mais um mito a desfazer-se.

091 eras de paixão

Os que não saem da sombra são tão ou mais importantes que os líderes,as pomposas figuras que dão a cara e às vezes mais nada. Não é o caso, Arturo fora escolhido pelas mais belas invenções do homem, de tal maneira bem elaborados que mesmo um não crente passa algum tempo fútil da sua vida a pensar nelas.

Arturo é um crente, profundamente desiludido com o vazio de acções, um crente que em tempos professou a fé, praticou o bem, perdeu-se nos 7 pecados mortais e regressou ainda a tempo de viver os amores proíbidos, ou da falta de sorte com as mulheres a quem resolvera entregar a sua paixão indelével pela vida. Em vão, por causa da etiqueta, da vacuídade mental ou porque as aparências não o levavam a ser objecto de fútil conquista.

Quando olha para trás tenta encontrar algum sentido nesses fracassos, alguma entidade que, na sombra, o tivesse desviado da suposta normalidade. Esse é um dos seus pontos fracos, como fraca será a vontade de o seguirem se manifestar essa fraqueza perante os ícones nascidos da imaginação fértil de corpos que nunca aguentam a ambição desmedida de almas que nem em sonhos se soltam por completo. Por isso não demonstra esse tipo de fraquezas, apenas se deixa levar pela noção daquilo que vai criar para o mundo. Faz disparates é certo, mas assume-os e ainda por cima goza com a situação. Para quem foi ao limite do Universo constitui-se como um humano demasiado normal.

Dentro do grupo selecto de entes escolhidos para a mudança final, há um que tem apenas 12 anos, os defeitos inerentes à idade e algumas virtudes inalcançáveis ao mero mortal. A sua influência na tomada de decisões do líder passa despercebida a quase todos, menos a Mary, a filha mais nova de Flor, que nos seus tenros 5 anos o elegeu para companheiro de brincadeiras. Sempre que o jovem peregrino está prestes a passar das marcas Mary canta, elevando o tom de voz até quase furar os tímpanos ao outro, que desiste, embora cada vez mais enraivecido.

Arturo sorri e passa imune a esses berros galácticos, pega nela e bailam no ar como antes viam nos filmes que mais encantavam a criança repleta de vida e projectos mirabolantes.

Enquanto a guerra não estalar há que brindar para lá dos limites impostos, a paga por fazer ou não fazer é sempre a mesma: a Morte.

Prólogo

Não chega o anonimato, há que queimar as consciências, os desejos, as atitudes dos que não querem saber, mas, sobretudo dos que se interessam pelo lado menos obscuro da vida.

Arturo é um crente, profundamente desiludido com o vazio de acções.

Não será ele a evitar a inquisição acelerada das consciências que se auto-inutilizam, apenas a salvar aqueles que se permitem ver a luz no meio das trevas aparentemente infinitas.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

090 noites de escasso amor


Morta, foi como encontrou a Vontade, depois de abrir os olhos. Como se não fosse suficiente o castigo de se passear incoerentemente entre fendas espácio-temporais, ainda tinha que experimentar as exéquias de uma das suas mentoras. Desta vez não podia culpar Lúcifer, era testemunha da sua perfídia ao momento da morte da amiga e intensa Vontade. Não, desta vez o culpado assumia um lugar diferente num Universo finito, onde coexistiam paredes inultrapassáveis com os triviais buracos negros espalhados pelo infinito de cores imprecisas.

Morta a Vontade, recuperados os poderes, Arturo voltou ao frenético mundo, onde, com Flor, as quatro filhas e outros 66 lutariam durante o Apocalipse para depois fazer crescer, naturalmente, a Sagrada Loucura.

Arturo voou pelo Universo fora, até chegar à parede que delimitava o conhecimento possível. Chamou pelo amor de Deus e recolheu o seu silêncio habitual, lançou pragas ao mundo feio que ia salvar e recolheu de novo o silêncio. Porém vendo as coisas por outro prisma já se escutava uma melodia de alguém morto após greve exagerada do coração, tal o excesso, o abuso, a contemplação de perfeição, apesar da insubordinação. Os aplausos sucediam-se enquanto se soltava ‘le poinçonneur des lilas’, uma após outra vez, sem que com isso Arturo se acalmasse. Gritou então, nos confins da existência, na fronteira da demência e talvez do outro lado da parede inultrapassável estivesse a montanha e o desejo personificado em Flor, nas suas quatro filhas e num amor simples de conceitos, grandioso em preceitos.

Sem que as personificações do bem e do mal ou qualquer outro dos peregrinos se desse conta, soltou uma lágrima, na cauda de um cometa que apareceu assim do nada, e para a Terra se dirigia, repleto da destruição Apocalíptica   que tantos apregoavam.

Não pensa agora no medo, apenas em juntar todos e apanhar o espírito de Stockhausen e fundi-lo com as suas decididas aventuras em que a mediocridade deixaria de existir apenas porque cada um já tinha dentro de si o gosto próprio longe do consumo de massas, das selvática opções dos seres humanos em se dominarem apenas por lucro e nunca pelas vocações internas de cada um.

As noites eram de escasso amor, ainda o são, mas o cometa e a sua cauda de destroços anunciados encontrá-lo-á no caminho de volta à Terra.

089 uma vida que se afasta


Uma opção a tomar em conta é dar ouvidos aos novos loucos, assim chamados porque ousaram participar em manifestações contra os líderes do comodismo absoluto.

Arturo olha de novo para a montanha, tenta decifrar os processos que levam a que o vento provoque uma falha de dimensões assustadoras no coração da terra arrefecida, mas deixa-se ficar pelo desejo de um simples abraço que se afasta cada vez mais, como se os deuses se unissem contra qualquer tipo de felicidade. Mas ele também não acredita nestes deuses, demasiado parecidos com os humanos, com vícios irritantes e perigosos, pelo poder de esmagar qualquer tipo de insurreição, apenas por um simples birra.

Tenta o presente, mas tem que se encostar ao passado, onde as aventuras se acumulam e parecem troçar de um presente aparentemente vazio, feito de alucinações e vidas destroçadas que o fazem duvidar da necessidade de se manter vivo e salvar o mundo.

Sabe que, fechando os olhos, pode ter acesso ao topo do mundo. Que, voltando abri-los, pode estar num hospício, enterrado numa camisa de forças que o obrigue a ser mentalmente mais activo, por isso aproveita o facto de poder olhar para a falha na montanha e pensar que é ali que tudo se altera. E como seria se todos pensassem ser capazes de salvar o mundo? Seria uma utopia, porque tomara a muitos salvarem-se deles próprios.

Na distância de um Oásis em que possa contemplar partes do paraíso, Arturo e Flor vivem numa dimensão de pura ansiedade, cansando o coração da falta de aventura intrínseca. Por isso mentalizam-se que os sonhos de rebeldia e mudança podem ser a realidade, provavelmente para lá da fenda que se abriu na montanha para onde olham todos os dias, quer com os olhos, quer com o coração.

Entretanto um estranho ruído acerca-se deste lado e as fronteiras da loucura, onde vivem outros eus, onde se parte em busca da liberdade e se combatem os estereótipos da sociedade, esbatem-se avivando memórias de tempos antigos em que a pureza das propostas dignas de concretizar era igualada pela infame ilusão provocada pelos demónios sem corpo.