sábado, 11 de dezembro de 2010

051 o louco impossível

De um momento para o outro a sua vida desmoronou-se. Abria e fechava os olhos não querendo acreditar no que lhe estava a acontecer. Já nem era uma questão de demónios escondidos no seu sub-consciente, mas a realidade desenhada em cores sombrias que levara ao brutal assassinato de todos os seus conhecidos, desde a família, à namorada e filhas, aos amigos e meros conhecidos.

Estava em casa envolto num oceano de sangue que lhe brotava do peito sem parar. Lá fora ouviam-se as sirenes e na televisão falava-se de uma chacina sem precedentes num  país pequeno junto ao Atlântico. Não, não era um simples pesadelo do qual pudesse acordar. A realidade mudou bruscamente e a loucura instalou-se no seu mundo de ideias feitas. Claro que havia de fazer parar o sangue de jorrar livremente do peito, travar as dores tenebrosas que lhe apanhavam a cabeça, serenar tudo e, quem sabe, acordar de novo como se não fosse nada. Mas era e ao mesmo tempo que ouvia a polícia a chegar ao seu apartamento, subiu ao sótão e rebentou com as telhas. Fugiu, completamente nu e ensanguentado. No desvario da situação tropeçou e caiu para a rua. Tudo ficou negro, não se conseguia mexer e a polícia fechava todas as possibilidades de escapar. Ninguém imaginaria que pudesse ter salvo um osso que fosse daquela queda aparatosa. Porém o pesadelo dos perseguidores transformou-se em realidade e deu-se um fenómeno meteorológico raro, com um temporal indescritível que alagou toda a zona em volta dos seus corpos, arrastando-os para parte incerta.

Horas depois acordou e o Sol brilhava, mais intensamente que nunca. Muito rapidamente pôs-se de pé, vestindo um fato impecável, com uma gravata de fino corte e uns sapatos de marca internacionalmente reconhecida, caminhava apressadamente rumo a algum sítio.

Esteve nesta azáfama algum tempo. Parou num quiosque e viu os jornais a anunciarem um suposto serial killer que desaparecera misteriosamente na noite passada, após ter deixado atrás de si um gigantesco rasto de sangue e corpos despedaçados. Seguiu, como se nada daquilo tivesse algo a ver consigo. Não tinha porque ao passar por um espelho não reconheceu a sua própria cara. Não se assustou, buscou um banco de jardim e sentou-se, inspirando profundamente para entender o porquê daquilo tudo.

Primeiro tirou a carteira, vasculhando os cartões e possíveis fotos. Viu apenas o cartão do trabalho e a carta de condução. O nome não condizia com o seu, apesar da cara ser a mesma. Aos poucos começou a entender que aquele passo de loucura era tão somente a possessão de outro corpo. O porquê já lhe havia sido explicado, era tempo de começar a entender.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

050 país de exílio

Se por acaso tivesse de voltar ao seu país, abdicando das conquistas efémeras ia ver apenas um futuro negro à sua frente, como se fosse uma doença e à sua espera estivesse o vírus da recaída. Não que vivesse no paraíso mas à medida que iam passando os dias sentia menos necessidade de voltar àquele modo de vida sem sabor e às pessoas que tinham pena da sua condição por detrás de um sorriso de circunstância. Aquilo que havia sido a fuga ao Inferno sem chamas estava de novo a transformar-se no regresso, como se fosse uma sina viver entre batalhas do que não gostava, nem sequer fazendo um pequeno esforço.

A relação com a namorada esfriara um pouco apesar dos intensos calores por quase nada. E voltando à estaca zero, nem calores nem frio, apenas um vazio que não deixaria ninguém preencher.

Era tempo de colocar-se de frente para a montanha, mesmo sem frio ou nuvens carregadas de desespero, apenas uma vista para o desejo de alcançar o topo do seu próprio mundo. Conseguia um sorriso e uma certa dose de alívio quando colocava o pensamento positivo e alguma resignação à frente do destino e das costumeiras fatalidades.

Agora que olhava para o Céu e já não se desgastava com as cinzas de fracassos passados, sempre podia ir de encontro ao ansiado momento de felicidade em que ela se acercou do seu corpo suado e o beijou com um amor desmedido. Nem parecia o primeiro beijo de alguém novo na sua vida, apenas a noção de que as suas reticências à permanência no país de exílio estava plenamente justificada com a simples existência daquele ser de uma generosidade sem limites.

Foi através dela que tomou contacto com um habitante da terra que lhe deu as notícias acerca do seu envolvimento na guerra que se travaria no anunciado Apocalipse. Pouco dado a especulações e a retratos dramáticos da sua própria pessoa, começou a ser tomado de assalto por pesadelos ainda mais envolventes que a sua vida de carne e osso. Afinal a sua deslocação não era fruto do acaso, bem como a progressiva surdez, presente na definição do seu carácter, primeiramente introvertido e depois cada vez mais anti-social.

Apesar de tudo dava-se ao natural trabalho de dar todo o conforto possível às filhas dela, em profunda revolução hormonal.

domingo, 28 de novembro de 2010

049 que farei deste silêncio?

Depois do banho tirou um cigarro e foi para a varanda, estava frio e chovia. À parte disso um silêncio sepulcral entre-cortado por uma ligeira brisa. Nada de estranho à vista e pôs-se a pensar em toda aquela confusão, como se não lhe bastasse o fracasso que estava a ser a sua adaptação a um meio ambiente que sentira o ideal para viver os seus últimos dias, fossem lá eles quando fossem. Não tinha com quem falar, era de noite, dia da semana e ninguém tinha tempo ou disposição para ouvir loucuras. Colocou a possibilidade de ir ao hospital mas rapidamente a abandonou apesar da fortíssima dor de cabeça. Voltou para dentro e tomou um comprimido para as dores enquanto fazia algo para comer. Passados 20 minutos estava em frente ao computador e a comer massa com queijo. Abrira também uma garrafa de vinho e bebia directamente pelo gargalo. É possível que na manhã seguinte nem se conseguisse levantar, mas tudo lhe soube muito bem e resolveu vestir-se para ir à rua. Apetecia-lhe o contacto com a chuva e andar, algo que fazia cada vez menos, mas fê-lo e não passou muito tempo até ter os pés assentes na calçada molhada. Sentia-se meio a cambalear, possivelmente a melhor ideia seria dormir outra vez, mas tinha que caminhar, descobrir o porquê daquele súbito silêncio que se apoderara dos projectos que tinha para a sua vida, da falta de vontade que tinha em ver de novo a montanha e inspirar-se com a sua majestosa presença, mas acima de tudo entender o porquê de ter que fazer um favor aos que o amavam, de se manter vivo. Era um fardo que começava a tornar-se demasiado pesado.

Após uma hora a andar e sabendo que já estava longe de casa resolveu parar, sentou-se num banco molhado, como os seus olhos já estavam à muito tempo. Se depois não tomasse as devidas precauções viria uma daquelas gripes loucas com consequências imprevisíveis. Logo se levantou tendo o silêncio como companhia. Seguiu pelas ruas desertas da cidade pequena, sentindo-se observado mas não vendo ninguém que desse substância aos seus temores. Sem ser um homem crente ou influenciável algo de muito forte se apoderou do seu sub-consciente, apressando-lhe o passo até à rua onde se via o apartamento das cortinas vermelhas. Por um instante pensou para si mesmo que até a alma venderia ao diabo se daí viesse a paz que lhe faltava.

048 estranha serenidade

Ficou parado algum tempo, parecia-lhe uma eternidade tal a força dos pensamentos quer lhe brotavam para fora do corpo em forma de imagens, mesmo diante de si, quase acreditando ser tudo palpável.

Na cama apenas e só a sua triste companhia. Teria que compartir esta espécie de desespero consigo próprio, capacitar-se que tudo não passava de um elaborado pesadelo. Sentia-se desamparado e nem no telemóvel pegou a pedir a presença da namorada. Ambos se distanciavam cada vez mais, criando apenas um mero hábito de companhia, onde antes existia amor.

Fechou os olhos, meditou profundamente naquilo que lhe trespassava a alma, tornando-se clara a sua missão naquele mundo à beira da perdição. Quase como que por instinto pediu a presença do seu anjo da guarda. Se ele existia, que se manifestasse que era hora de saber se podia ou não acreditar nessas coisas do sobrenatural. Quase instantaneamente sentiu uma ligeira brisa entrar dentro da cama e subir-lhe pelas costas. De um momento para o outro aclarou-se-lhe no espírito que tinha de seguir um plano definido de forma a encontrar o equilíbrio mental que o prepararia para o futuro. Sentiu-se estranhamente sereno, deitou-se de novo, que ainda era cedo para retomar a vida que estava certo nunca mais voltar a ser a mesma.

A serenidade com que levava a vida tinha os dias contados e sendo certo que o suicídio estava fora de questão, embora não o soubesse, algo de trágico podia estar para acontecer. Irael sentiu toda essa confusão e não fora uma entidade invisível quase que se podia dizer que podia começar o processo de reversão, deixando de ser um mero pesadelo para se tornar a realidade.

Despertou de novo sobressaltado, repetindo nomes de pessoas que nunca tinha visto na vida, numa língua em que não se entendia, como se na realidade estivesse possuído pelos seus próprios pesadelos. Levantou-se, despiu-se e foi tomar um banho de água quente, enquanto a cabeça latejava, suspirando pela presença da namorada e da sua necessidade infinita de orgasmos.

Mas não era de sexo que ele precisava, apenas um pouco de energia positiva que o fizesse regressar à normalidade, à insonsa mas preferível vida que tinha aquando dos olhos abertos e da consciência mais ou menos pesada.

sábado, 27 de novembro de 2010

047 noites de vigília

Identificado como líder da sagrada loucura, o peregrino seguia uma vida relativamente normal, cada vez mais longe de conhecidos, aproximando o coração de uma vontade acérrima de mudar a própria vontade de desaparecer. Sem saber o porquê lutava contra todas as ideias de oferecer a alma ao diabo por um pouco de paz, desconhecendo a presença de Irael que desempenhava o papel de alterar aquilo que Deus e o seu líder Lúcifer haviam acordado antes deste ser expulso do paraíso pelo próprio pai.

Sabendo da entrada do demónio no escolhido, Deus enviou o seu anjo da guarda para o proteger de alguma mudança de planos do seu inimigo de sangue, soltando-lhe a ira antes de tempo, levando tudo ao caos e destruição.

Foram noites de intensa vigília, em que a morte rondou o peregrino provocando-lhe uma angústia sem limites que não o deixava dormir em condições. Nesses momentos lembrava-se do conforto da namorada e abria os olhos inchados de dor, prontos para viver mais uma luta que terminasse com o final do dia, adormecendo de novo.

A cada dia que passava dormia um pouco menos, fruto da solidão que o acompanhava de novo, dos pesadelos e dores musculares que o faziam levantar-se de repente da cama, num desespero cada vez maior.

Apesar disso, sempre que saía de casa, conseguia encontrar alguma serenidade observando a neve, que caía, fora de tempo, vestindo a montanha de um branco augurador de um vazio que pressentia acercar-se da sua alma para não mais o abandonar.

Noutro sítio, bem longe da confusão instalada na cabeça peregrina, alguns casais entravam em combustão, logo após a mulher entrar numa sessão de orgasmos múltiplos. Paralisavam no momento em que começava a lenta assadura a que era sujeito o seu corpo. As lágrimas caíam e Ervidel ia tomando forma humana, fortalecendo a matéria no último suspiro dos carbonizados.

Aterrorizados pelo sucedido, alguns deixaram-se levar pelas mensagens do Apocalipse, vendo os imensos rios de sangue que cobririam para sempre os pecados cometidos na fronteira ténue entre a razão e a demência. Enquanto isso o corpo do peregrino ia consolidando a sua relação com alguns dos sobreviventes à chacina de um ser infernal.

Despertou suado. Tudo havia sido um mero pesadelo. Como seria possível crer numa história de demónios e num tal peregrino que andava perdido em angústias mesquinhas, em vez de se consciencializar que era a chave da salvação da humanidade?

046 mortais e submissos

Enquanto isso o peregrino viajava, com a perigosa sensação de ser observado com toda a atenção no meio da multidão da grande cidade onde ia tratar de assuntos mundanos. Nem apertar a mão da sua namorada lhe dava alguma sensação de conforto, apesar de dominar o demónio real que tinha dentro de si. Afligia-o ainda a horda de transeuntes que deambulavam pelas ruas, sempre com o mesmo destino e expressão de ausência prolongada dos corpos em lenta decomposição, repletos dos infinitos medos de quem está sujeito a um ataque de coração sem se dar conta do que lhe passou.

Eram estes os próximos alvos dos mortos que regressavam ao contacto com o ar dos humanos, os mortais e submissos desenvolvidos mentais da civilização dourada que bebe de todas as influências externas à sua identidade.

E foi numa destas situações de indiferença que se deu um fenómeno raro que quase matava o peregrino. Não fosse Irael e a absoluta necessidade de manter vivo o receptáculo em que se instalara comodamente e a lava incandescente que apareceu do nada, chacinando os transeuntes desnecessários a alguma entidade invisível com poderes para dispor dos destinos individuais, quase o levava.

Tal como apareceu a lava desapareceu. Nem sequer ficou um vestígio da passagem do fenómeno, para que os jornalistas pudessem levar algo que fizesse subir as vendas dos jornais moribundos. E Lúcifer, narcisista por natureza, dava imensa importância a audiências pelo que a fúria destruidora não se fez esperar, caindo um avião militar carregado de engenhos explosivos programados para explodir em pleno coração de uma cidade grande em dia de greve geral e manifestações acirradas pela crise constante a que os seus demónios nos governos faziam passar os povos. 

Assim foi feito e o mal  não podia ser mais encoberto, gerando a famosa onda de solidariedade em torno das vítimas, abrindo-se contas bancárias de solidariedade e especulando-se que o terrorismo havia atingido o seu auge com esta operação, obra do demónio mais pérfido dos Infernos. Foi remédio santo para subirem as audiências e o lucro subjacente às mesmas dos mortais e submissos ao senhor das trevas. Mas algo mais lhes estaria destinado no fim dos dias. Lúcifer era feliz de todas as maneiras.

A uma distância relativamente curta de Lúcifer via-se uma espécie de tormenta a aproximar-se. O ruído aumentava de intensidade e o Céu enegreceu-se com rapidez, como que engolindo o Sol ficando a Terra entregue às naturais trevas provocadas pelos humanos. Ao mesmo tempo escutavam-se gemidos entre-cortados com gritos lancinantes de dor. Os mortos de todos os cemitérios levantavam-se das suas campas e buscavam a chacina necessária para alcançarem a paz eterna a que tinham direito.

domingo, 14 de novembro de 2010

045 mortos intranquilos

Muitas eram as casas onde se deixara de dormir com tranquilidade. Era cada vez mais frequente ver homens em pijama e mulheres em camisa de noite, ambos na rua, com os olhos marejados de lágrimas vindas de um pesadelo que os impedia de dormir.

Tudo começou num último dia de Verão, em que a chuva torrencial trouxe consigo todas as almas penadas desde o tempo em que o homem se tornou incapaz de alcançar a fantasia narcisista do Eu absoluto com a extracção de uma costela decisiva, da qual dizem ter nascido a mulher. Qualquer laço familiar era o suficiente para uma dessas almas buscar o elemento familiar mais adequado para levarem a cabo o fim total da sua tormenta. Antes viajassem no dorso de um cavalo majestoso e fossem lançados no abismo sem retorno da droga e dos suplícios.

Não muito longe das cidades de vivos intranquilos haviam terras remexidas onde se abrigavam os corpos em decomposição. Porém, de forma desordenada, lançando gritos de dor, esses mesmos mortos saíam do seu suposto repouso, uns mais decompostos que os outros, todos lançando veneno para o ar e caminhando com a direcção própria dos sem coração, rumo ao destino incerto dos que os chamaram o esquecimento eterno.

A morte tem um motivo de ser e qualquer coisa que a perturbe, interrompendo-a e injectando-lhe vida é punição a dobrar., mesmo que seja o anjo Lúcifer o culpado de todos os males da humanidade.

Cada vez havia mais gente na rua, em puro desespero, experimentando uma sensação de morte, sem que o coração parasse nem a luz ao fundo do túnel se revelasse. Os mortos saíram dos seus recantos e chegaram rapidamente, em absurda agonia à procura do verdadeiro descanso, pondo à prova todas as melhores capacidades do escudo protector de cada um que encontravam pelo caminho. Não vertiam lágrimas dos seus  corpos secos, apenas vomitavam os vermes infectados pelo ar, atingindo cada um que manifestasse a mais pequena ponta de qualquer um dos pecados mortais.

Foi um desfilar intenso de recém-falecidos a juntarem-se à horda de extenuados condenados, mas também uma verdadeira  surpresa quando os vermes simplesmente se diluíam aos pés de seres absolutamente impolutos. Afinal naquela constelação de gente com premonições de morte e de dor, a própria morte não conseguia alterar o estado das coisas levando novos adeptos para ajudar o senhor das profundezas do Inferno na sua extravagante missão de ser ainda mais criativo que os humanos na destruição do mundo.

sábado, 13 de novembro de 2010

044 um profundo silêncio

De nada valia um profundo auto-controle se havia a capacidade de abrir uma brecha nessa muralha aparentemente intransponível. Porém, o demónio Irael descansava dentro do coração do peregrino, zelando pelo seu bom funcionamento, aconchegando a sua destruidora influência ao sangue, para sempre contaminado.

Apenas um profundo silêncio se abateu sobre a sua vizinhança, como se pressentissem a chegada do anti-Cristo que os exterminaria no dia do juízo final. Pouca gente acreditava que o mundo devia caminhar para a paz total, porventura com o desejo infantil de não absorver a maldade, existência física e demais coisas que faziam o grande Satã saltar de orgulho, enquanto a viagem ao Inferno se ia encurtando demasiado.

Estavam em silêncio mas era impossível a paz. As cortinas vermelhas escondiam um segredo atroz que apenas era do conhecimento de Irael, firmemente instalado em cada célula do coração do peregrino, esperando pelo momento final em que toda a verdade seria revelada.

Ajeitou-se a cama e estando sozinho teve uma forte sensação de que alguém o acariciava. Algo lhe perturbava a olímpica calma, o auto-controle e os pesadelos, mais cedo ou mais tarde saltariam para o exterior do seu corpo.

Numa noite calma em que mais uma vez ficou a sós, teve uma visão apocalíptica do mundo, em que se via no topo de uma montanha, vendo uma espiral de fogo em crescendo destruindo tudo à sua passagem. Estranhava o facto de não se ouvir absolutamente nada, sobretudo quando os espíritos se tornavam visíveis, mesmo após a morte do seu invólucro. Não lhe era possível mover-se apesar dos olhos captarem o Apocalipse, que pressentia ser apenas o início de uma tormenta sem precedentes.

Ele que não fumava, acendeu um cigarro, vindo do nada assim como a chama que lhe avivava de novo a paz de espírito. Quase de repente sentiu um golpe profundo nas entranhas, uma dor dilacerante e o seu espírito a querer desprender-se. Foi neste ponto que acordou sobressaltado, sentou-se na cama pondo a mão direita no seu peito. Não havia dúvidas que ainda estava vivo e dissiparam-se as que ainda podiam existir acerca da existência de fantasmas quando sentiu sair pelos poros uma sonora gargalhada que lhe dilacerou os músculos dos braços e das pernas. Depois de se acalmar, tudo mergulhou de novo num profundo silêncio.

domingo, 7 de novembro de 2010

043 os passos do caminhante solitário

Num mundo alucinado, onde pelo mero respirar se era tomado de assalto por um anjo ou demónio, ser peregrino da sagrada loucura era um fardo de consequências imprevisíveis se por acaso se desse uma nova época glaciar, proveniente do aquecimento global que por sua vez provocaria um aumento brutal do nível das águas, devastando tudo e todos até a ordem natural das coisas se repor.

Era necessário prever os passos solitários de um homem destroçado pela razão, apesar da força indomável de todas as suas emoções. Havia que tomar cuidado com a libertação de energia de maneira a não desequilibrar ainda mais o estado caótico de um mundo perdido.

Essas emoções não passaram despercebidas ao senhor das trevas que enviara para o mundo dos homens uma entidade que se alimentava  da ira humana no seu estado mais puro. Havia que ceder ao pecado capital para que o demónio se manifestasse e assim entrasse num receptáculo. Porém só o grande líder, que ainda não sabia que o era, lhe interessava e a impaciência pelo ataque mais primitivo da fúria era cada vez mais intensa.

Apesar de estar prevista a dita fatalidade, não havia forma de adivinhar o pensamento daquele ser banal, de uma vulgaridade quase atroz quando se pensava na importância que viria a ter, mas a imaginação do líder das trevas era algo de pérfido, como não podia ser de outra maneira e deu a volta à questão.

Numa das suas caminhadas deparou-se com uma situação intolerável, algo que possivelmente faria desaparecer a sua proverbial calma. Um fulano de boa aparência entrava dentro do seu carro, sem sequer se dar conta faz marcha-atrás e atropela uma criança. Pára, sai do carro, olha para debaixo deste e vê o petiz a querer levantar-se, como se por um milagre não lhe tivesse atingido nada. Sem que nada o previsse volta a entrar no carro e acelera a fundo. Esmaga uma perna ao miúdo. Volta a  sair e bate com a cabeça do miúdo violentamente contra o chão. 

Um multidão que se foi juntando ali perde as estribeiras e lança-se a ele que fica imóvel entregando-se ao destino mais que provável. 

O peregrino interrompe a sua caminhada e entrega-se à orgia de violência em crescente apoteose. Sem que ninguém se dê conta o miúdo levanta-se e toca-lhe. O demónio entra dentro do peregrino, sem qualquer alarido, sem sequer poder manifestar-se, até conseguir juntar os outros seis diabos junto ao cofre dos enigmas dourados. Um segredo de tal maneira bem guardado que apenas o anjo da guarda do peregrino, designado por Deus, sabe o caminho.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

042 cais da infância

Atrás da porta estava um desejo tornado realidade e os olhos iluminados da mãe não faziam crescer mais ansiedade na família, quase recuperada do susto que ela lhes havia dado. O ser precioso que dormia junto ao seu peito tinha cabelo farto e a cara enrubescida do anterior calor do ventre materno ia sendo substituída por uma tranquila expressão imbuída de paz, muita união e sorrisos de esclarecedora felicidade. Uma mãe que se preze não consegue ver outra coisa num filho recém-nascido.

Os primeiros anos foram de manifesta concretização de sonhos, como se o dia apenas seguisse o rumo natural até à rua onde a vizinhança sempre se perguntava porque estava aquela janela sempre iluminada. Era-lhes explicado, mas no dia seguinte voltava-se ao mesmo e assim consecutivamente, ate à náusea.

Após alguns anos de insistente loucura, a pergunta deixou de ser feita porque a luz se apagou e a janela se tornou indistinta. O mundo daquela pequena rua voltava à normalidade e ele passava a ir à escola.

A professora sempre lhe açoitava o rabo, não por ele não saber ou evitar participação activa, mas tão somente para descarregar as frustrações da falta de infância, razão pela qual era venerada pelos grupos de pais, que advogavam uma palmada no rabo que a alma também progride, não apenas o corpo ou muito menos um efémero orgasmo.

Cresceu entre palmadas e promessas, sem grandes conversas e aninhado nas histórias mirabolantes que lia lá nos confins de sua casa, onde frequentemente havia uma porta que dava a outra dimensão. Foi num desses delírios que descobriu um mapa, já antigo, acompanhado por algumas anotações pouco inteligíveis. A espaços conseguia decifrar o seu nome, mas o raciocínio bloqueava para dar lugar a um branco espesso que impedia de ver mais além.

Experimentava uma sensação de pura dor, mas era absolutamente irresistível a tentação de chegar mais longe, alcançando o zénite das emoções, algo apenas possível pelas dicotomias de personalidades distintas sem que ao princípio conseguisse sequer dar-se conta disso.

O equilíbrio surgiria mais tarde quando começou a sonhar com uma dimensão muito para além da mera existência física. A vida seguia normal durante o dia, com as vitórias e fracassos costumeiros de um ser banal, mas assim que fechava os olhos desvendava-se mais uma peça do seu intrincável puzzle pessoal.

sábado, 18 de setembro de 2010

041 peregrinos da sagrada loucura

Em nome da sagrada loucura saíram todos os crentes num mundo livre de conceitos a uma rua obscura porventura cheia dos demónios que urgia defrontar. Assim nasceu um movimento espontâneo em que se tornou o líder espiritual, assim designado pelo grande mestre do eterno desassossego, livre das grilhetas da imbecilidade reinante desde tempos imemoriais.

Depressa se fez sentir a repressão contra o crescente clima de optimismo, lucros exageradamente altos de gente anti-sistema, reprodução de uma nova bíblia devidamente financiada por esses mesmos novos ricos, em delirante crescimento.

Sem se saber bem porquê, apenas com a paranóia instalada, referendou-se o sim à pena de morte em praça pública com posterior transmissão televisiva em horário nobre.

Ao mesmo tempo que espalhavam a loucura da vontade própria iam desacreditando, um por um, todos os opositores às aspirações de uma vida normal, sem o fardo pesado do trabalho por conta de outrem e da sua função financiadora do lazer pecaminoso da ladroagem directiva. As baixas tornavam-se evidentes nos dois lados e apenas proporcionou o aparecimento de líderes ainda mais esquizofrénicos que os do costume, o que não era, de todo, o objectivo pretendido.

E ele seguia tranquilo na sua nova missão de desconhecido líder de uma nova ordem universal que tinha firmes opositores vindos das profundezas do Inferno para atormentar as almas opositoras dos desígnios previsíveis de Lúcifer.

Tranquilidade, assim vinda do nada era o melhor e mais eficaz antídoto para as calamidades que se multiplicavam a um ritmo cada vez mais alucinado.

Vivia então na fronteira da insanidade mental, rodeado de seres abjectos, cegados pela ira que lhes era injectada directamente na alma e expirada em corpos degradantes, provocando rápido contágio por cada átomo correspondente que os cercava. Era inevitável uma qualquer brecha no espaço que dividia os mundos paralelos, tanto os corpóreos como os outros que tinham os mais variados tipos de versões segundo aquilo em que alguns achavam que todos deviam acreditar.

No meio dos peregrinos da sagrada loucura, algo de estranho se passava, como se devessem prestar súbita vassalagem a algum anjo orientador. Porém era inviável o sentimento de submissão num dos abençoados loucos, que agia com distinta anormalidade dos demais.

Dizia a profecia do quinto patamar do cofre dourado que um demónio continha no sangue do seu receptáculo carnal o código que permitiria o acesso ao sexto e penúltimo patamar do objecto que alteraria para sempre o destino da humanidade. Todos o negavam, cada vez com mais veemência e a cada mentira que crescia Deniel aumentava o seu poder terreno, disfarçado de peregrino.

domingo, 12 de setembro de 2010

040 os lugares do mundo

De todos os lugares do mundo com as condições ideais para alcançar o cofre dos enigmas dourados, havia apenas um que as reunia, pelo que foi nessa cidade, classificada de património mundial, que foi travado um combate de uma violência indescritível entre as forças maléficas aliadas de El e os anjos de Le, o omnipotente benfeitor. Pesadas baixas se viriam a dar, transformando almas imortais em meros humanos. Porém um demónio escapou desse destino cruel e fugiu para a dimensão dos vivos com os seus meros vinte e um gramas de peso. 

Almiel era uma simples brisa que se misturava com os infinitos compostos químicos à solta na atmosfera. A sua composição tornava-o especial perigoso pela transformação de oxigénio em monóxido de carbono, algo trivial no planeta a todo o instante e que lhe dava a consistência necessária para se transformar num humano, moldando a seu bel-prazer a carne que lhe revestia os ossos. Em alternativa podia entrar em qualquer corpo mesmo sendo este portador de uma alma incorruptível. A única falha do processo era suportar a esquizofrenia que se instalava no receptáculo depois entrar neste durante um determinado período e que provocava níveis de destruição absurdos de tão elevados. Por isso e como havia sido convocado para a missão final teve que se deslocar para longe do esconderijo do cofre mais bem guardado pelos arqui-rivais celestiais.

Só que um demónio como Almiel jamais se renderia à evidência da espera e submissão ao seu líder todo poderoso. Mais do que qualquer outro tinha a capacidade de destruir tudo o que lhe aparecia à frente, utilizando a tortura como meio mais eficaz para se tranquilizar enquanto tinha que esperar no exílio.

A fuga rumo ao paraíso possível era algo cada vez mais incentivado pela Igreja Católica, tendo-se chegado a um consenso generalizado sobre as origens do mal e a melhor forma de a combater, só que essas conclusões ficaram escondidas da população em geral permitindo o genocídio de raças inteiras e credos em particular. Segundo os líderes de tal Igreja era possível combater o mal, de origem desconhecida, pela força de vontade em acreditar sem que isso significasse vender a alma a qualquer templo equipado com sofisticadas máquinas de lavagem cerebral, mas a forma de ajudar as populações em desespero era pela via da oração, algo perfeitamente inútil na presença de um demónio que se alimentava da degradação natural dos corpos.

Almiel tinha sabedoria suficiente para adiar a sua derrota final através do caos e o sangue voltou a jorrar em abundância, renovando os humanos sobreviventes para o dia do Juízo Final. E como corpo deixa de funcionar sem determinada quantidade de sangue era nesse momento de fraqueza que as almas eram condenadas aos fossos mais profundos do Inferno, pela eternidade.

Numa aldeia remota, com poucos habitantes, deu-se um fenómeno de inolvidável crença na fraqueza do corpo, tornando-o inapelávelmente forte. O seu único sobrevivente recebeu Almiel como hospedeiro incontrolável.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

039 dias de cólera

Sobreveio a loucura num dia de tempestade que provocou milhares de mortos e outros tantos estropiados. Os gritos de dor pareciam ser contínuos, mesmo para lá da náusea provocada pela constante aflição de nada poder contra as forças impiedosas da natureza, naturalmente desgastada e a responder com a violência adequada à intromissão efectuada pelos maquiavélicos humanos.

Fechavam-se os olhos na tentativa de mudar alguma coisa, mas ao reabri-los apenas se acentuava o terror paralisante de tanta sedução de que estava imbuído o aproximar do fim do mundo.

No meio do medo em desmesurado crescendo rodopiava um pequeno objecto não identificado. Era demasiado pequeno para poder ser participado às autoridades, quer as altas, quer as naturalmente incapazes, porém era apenas o intromissor principal na onda de destruição verificada. Precisava apenas de sentir a impotência de cada ser que o trespassava para se ir alimentando.

Ao longe alguém gritou 'fugi enquanto podeis das garras venenosas de Fraquiel, não deixais que ele se alimente das vossas fraquezas por mais justas que sejam!', mas um raio simplesmente o reduziu a um mero corpo sem vida ou qualquer tipo de energia reutilizável. Como se depreenderá a população por infectar juntou-se para combater o regresso de mais um filho mau da terra.

Só que essa união aumentava mais a fraqueza, produzida pelo medo escondido dentro de cada um. Apenas os verdadeiros destemidos não foram atirados para as profundezas de um Inferno fétido, ainda pior e mais tortuoso que a própria maldade humana. Fraquiel renascia numa época de verdadeira descrença e dava início à busca pelos outros demónios soltos com o fim de dar curso à maldição que cegaria por completo a noção de bem da população humana.

Apesar de todas estas convulsões e metódicos processos de assassínio de presumíveis culpados, o Sol brilhava com uma intensidade fora do normal, promovendo o fortalecimento de Fraquiel que culminaria com a possessão de um humano absolutamente normal e torná-lo na besta maquiavélica necessária para poder reconhecer os outros seis demónios, primeiro passo para o Apocalipse total, profusamente divulgado pelas profecias de alguns antigos, naturalmente à prova de demónios.

Durante seis dias seguidos choveu copiosamente e uma cidade inteira foi engolida pelo rio em cólera, depois de sugar todas as almas consumidas pelo medo. Sentiu-se então preparado para o grande salto. O hóspede era apenas uma atraente recepcionista de uma conhecida firma de advogados. Em breve tomaria conta do coração amedrontado do maquiavélico advogado.

domingo, 5 de setembro de 2010

038 um sítio para o esquecimento

Algo brilhava com uma intensidade superior à normal, como se se manifestassem de forma abrupta algumas das mais nefastas consequências do aquecimento global. 

Era apenas um dia de Sol, raios intensos a perfurar a atmosfera mais que o normal e alguns seres a sofrerem queimaduras quase instantâneas, motivadas por algum colapso na camada de ozono. Porém tudo era provisório, tal e qual como o mundo daqui a muitos milhões de anos será engolido pela expansão final do Sol, que porá um ponto final a toda a fantochada criada pelos humanos para dominar o planeta Terra. Claro que, como nesse presente, as mentes mais prodigiosas e sobretudo as mais endinheiradas, já estariam a anos-luz da omnipresente desgraça que a todos aflige.

Apesar de por vezes sorrir perante os cenários da desgraça, eram mais as vezes em que sentia algo maligno crescer dentro do seu ser e os comprimidos para a depressão daí advinda o perfeito bálsamo para o esquecimento de um mundo em busca de super-humanos que o salvassem com o plano certo.

Havia que encontrar o sítio certo para substituir os pesadelos recorrentes por um qualquer ente iluminado pelas energias positivas, algo que sentia com pouca intensidade. A vida não lhe sorria de feição e o mundo mostrava-se algo mais violento e propício ao colapso nas formas de vida.

Foi na deambulação pelos recantos mais sujos da sua existência que se deu conta da sua solidão, vivida numa grande metrópole apinhada de potenciais suicidas que conduziam a falta de desejo ao seu Apocalipse final.

Para ultrapassar esta amargura e impedir a formação de metástases que lhe minariam toda a auto-estima permitiu-se desligar por instantes o contacto à Terra, viajando muito para lá da fina camada de gelo que se havia criado entre si e uma suposta vida normal.

Transformou-se a história de alguém sem interesse num monstro de contornos mitológicos, pela fama adquirida e pelos anos intensos de viagens rumo a um sítio para o esquecimento, o que lhe estava vedado por via da sobre-exposição a que estava sujeito. Desta maneira era impossível arquitectar planos de fuga física, deixando o povo incrédulo a chorar pela revelação ad eternum das mesmas tentações que há muito recebiam como novidades arrepiantes.

Nesta dimensão paralela de soberba foi-lhe dado a conhecer o Rei de todos os Reis do qual, naturalmente, não se lembrava nem da cara nem da possível metamorfose necessária para ser visível por um mero humano por mais famoso que este fosse. Já era hora de abreviar caminho até à glória, mesmo que isso não passasse de mera ilusão.

sábado, 4 de setembro de 2010

037 o sangue de um povo triste

Um dia, ao despertar, deu-se conta das novas cortinas vermelhas, algo que antes apenas aparecia em sonhos. Talvez pelo avançar da madrugada, da breve chegada do amanhecer e das rotinas a que se sujeitava diariamente não lhes deu a devida importância. Dirigiu-se à janela para ver a Lua mas deparou-se com o vazio. Se seria absoluto não o sabia, apenas agarrou o peito com medo que o coração deixasse escapar as suas batidas metódicas e recuou.

No suposto prédio que deveria estar em frente, nada vislumbrava, outro homem recuava perante a ausência de tudo. Ambos soltaram lágrimas amargas de uma dor por qualificar. Porventura seriam mega-estrelas devidamente empacotadas em cromos a colocar em qualquer posterior anedotário se a dor não se intensificasse a cada segundo que passava. Cerrou os olhos e pensou na situação mais absurda possível. Em poucos segundos deveria sair um sorriso de incandescente glória que queimaria possíveis demónios, porém o que se passou foi um fenómeno de junção de partículas, aparentemente inclassificáveis , que foram tomando a forma de um ser humano. Do outro lado apenas gritos lancinantes de uma dor atroz que lhe entrava pelos ouvidos dilacerados a dentro. Só que nada fazia, estava em absoluto delírio com o que via nascer, mesmo em frente a si.

De repente tudo se desvaneceu, voltou de novo à janela e via hordas de pessoas caminhando sem destino. Alguns sangravam dos pés gastos de tanto andar. Algumas lágrimas em doses mais abundantes formavam um rosário de frustrações que aglutinava um cada vez maior número de insectos. Este estranho fenómeno foi-se multiplicando em volta do charco original e alguns transeuntes foram caindo, desamparados, numa morte de contornos dantescos. Estava assim anunciada a chegada de Xarquiel, um demónio que crescia no sal das lágrimas, duplicando os sentimentos de dor em seres que viviam da aparência de felicidade desguarnecida da intensa vontade de mudar o mundo por um qualquer ideal válido.

Dando-se conta do intenso mal-estar que aumentava na sua rua fechou a janela e refugiou-se atrás das cortinas vermelhas. Lá fora todos se viravam para aquele edifício antigo e gritaram a plenos pulmões até rebentarem as cordas vocais, um por um. Tudo se passou em menos de meia-hora tornando-se Xarquiel suficientemente forte para partir em busca dos outros demónios, levar-lhes as coordenadas exactas do ataque final e angustiar até à morte todos os incautos que encontrasse pelo caminho.

Entretanto um terramoto de grau nove na escala de Richter destruía uma capital europeia. A morte andava em festa pelas ruas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

036 este corpo em decomposição

Porém algo mais profundo se passava no cemitério de uma pequena cidade no nordeste de Espanha. O caminho era feito sempre em subida íngreme sendo os esquilos, habitantes dos pinheiros a salvo de incêndios, presença assídua na vigília dos que pudessem perturbar a natural decomposição de seres feitos para ninguém mais se lembrar deles.

Era usual ver-se caravanas de almas em sofrimento pela perda de algum corpo querido e escutar-se os esquilos de olhos bem abertos a perscrutar tudo com a máxima atenção. Chegados lá acima, do lado direito, havia uma porção relativamente grande de ervas daninhas que destoavam da paisagem geral. Mas foi durante o silêncio sepulcral da noite que se deu um fenómeno bizarro que provocou a morte de quase todos os esquilos. Para quem tivesse poderes extra-sensoriais era fácil adivinhar a presença de um qualquer demónio. Assim foi e era o tempo de Mortuivel se manifestar, renascendo por meio da fraqueza dos vivos perante almas em transição.

De início não se deu pela falta dos pequenos animais, a fonte de equilíbrio entre as almas que ainda podiam ser purificadas e as danadas pela eternidade, por natureza corrompíveis sempre que alguma situação o justificasse.

Sendo um caso único em que se dava a guarda do portal das almas em transição a pequenos animais como esquilo, tornava-se estranha a intromissão de Mortuivel, causando o caos sem que as forças opostas, devidamente avisadas, fizessem algo que impedisse o crescimento desta força destruidora invisível..

Ao primeiro raio de Sol estava preparado para receber o seu primeiro hospedeiro, sendo a alma do coveiro a eleita. Sendo um senhor de provecta idade, era casado com uma professora reformada, mas ainda influente no pequeno meio em que vivia o que lhe agradou ainda mais.

Mortuivel passou rapidamente a sua energia negra e destrutiva para a dita senhora que mantinha uma amizade intima com a sogra do presidente da câmara. A dita amiga mantinha uma escaldante relação sexual com o genro, sendo a forma perfeita de atingir os fins a que estava destinado por Lúcifer. 

A primeira medida a ser aprovada seria um projecto-lei em que ficasse estabelecida a expulsão imediata de todos os estrangeiros sem situação legalizada. Tal medida foi aprovada em tempo recorde, provocando uma onda de indignação em todo o país, passando a especular-se sobre os motivos profundamente racistas da mesma. O facto de a repressão recair sobre quinze mil muçulmanos provocou uma onda de atentados que lançou o caos na comunidade há longo tempo a reclamar a independência. O sangue jorrava de novo e em abundância, provocando divisões irreconciliáveis entre defensores de direitos humanos e nacionalistas radicais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

035 ao fim da tarde

Os dias bucólicos, em que a presença de familiares distantes se tornava como que o acontecimento do século, eram cada vez mais escassos, possivelmente fruto do mau feitio do anfitrião que arranjava sempre um pretexto para provocar desgostos na assistência, que cedo se arrependia da presença planeada com tanto afinco pelo desestabilizador.

No meio desse vendaval de desistências, notou-se uma presença tardia, porém assídua, como se entendesse que tudo devia ser redigido segundo as leis antigas da fraternidade, nem que para isso tivesse que matar, tornando-se um pária.

A viagem passava a ser feita numa carruagem estranhamente limpa, como se o mundo se resumisse a um amontoado de corredores e assentos que, devidamente utilizados, levavam o passageiro pela quinta dimensão dos prazeres carnais, seguido das profundezas do Inferno, indevidamente conquistadas pela sedução de um anjo perdido de nome Ervidel, que de tanto ser torturado se esqueceu da missão divina e se transformou num demónio.

Rezava a lenda que os seus poderes se libertariam ao fim de uma tarde, imediatamente depois do solstício de Inverno, notando-se a sua presença física junto de árvores centenárias. Foi assim que saiu o primeiro demónio da sombra, rebentando com uma mala perdida num aeroporto, que viajara por caminhos obscuros e mãos invisíveis até cair esquecida num aglomerado populacional cuja fonte de rendimentos maior era um abeto de doze metros de altura. Ervidel apenas teve de esperar pela passagem de um ser vivo, em condições, para se materializar. Para ajudar provocou um apagão geral na zona, que atraiu para lá alguns meliantes, piquetes da companhia de electricidade e alguns polícias, tudo gente sem a mais pequena importância. Teve de esperar algumas horas até aparecer uma jornalista que possuiu no momento em que ela tocou na mala. A partir desse momento poderia mudar de hospedeiro sempre que se justificasse e não houvessem perdas de energia desnecessárias, mas deixou-se ficar naquele corpo interessante.

A sua primeira missão foi reeducar a sua hospedeira de maneira a poder extrair-lhe todas as potencialidades.

A cidade entrou em pânico com o aparecimento de algumas pessoas horrivelmente mutiladas. Em cada bairro que passava deixava o caos instalado. O seu poder aumentava de forma brutal à medida que possuía as almas dos inúteis que liquidava e o seu maior poder começou a tomar dimensão: a invisibilidade. Mas isso tinha as suas desvantagens, para manter a invisibilidade dentro de um corpo humano tinha que extrair todo o sangue de outro a cada hora que passava, quando não o fazia o corpo possuído tornava-se zombie e tinha que procurar outro hospedeiro.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

034 pouco antes da minha morte

Todo o poder conhecido pelo ser humano era insuficiente para combater a perfídia subjacente aos planos metodicamente delineados, em tempos imemoriais, que estavam prestes a ver a luz do dia. Os sete demónios libertados pelo nascimento do ser número seis biliões e dezassete mil partiriam em busca do cofre dos enigmas dourados, de paradeiro incerto. Essa circunstância levaria ao agudizar das relações entre as principais potências mundiais provocando o puro caos.

Como sempre os loucos, devidamente vigiados, previram todos os passos, inadmissíveis aos olhos do mero mortal, lei absoluta dos líderes das nações mais importantes. Todavia seria impensável que, pouco antes de muitas mortes, fosse revelado o tenebroso segredo que levantaria o pai do anjo Lúcifer das trevas rumo à luz em que residiam os piores pesadelos suportados pelo mero mortal. Nada podia prever a necessidade de invocar o espírito de algum imperador romano de forma a educar o povo e a esterilizar o poder maligno que se fortalecia de segundo para segundo.

Tudo estava previsto e, ultrapassando o elemento surpresa, o mal venceria em toda a sua extensão.

O som era cada vez mais alto, provocando surdez temporária nos eleitos para combater o mal anunciado, por isso se tornava mais fácil comandar as tropas rumo a uma escuridão confundida com um qualquer paraíso supra-terreno.

As pessoas manifestavam a sua alegria lançando-se num abismo inesperado, apenas por não terem paciência para esperar pelo momento adequado de conquistar a nobre função, pela qual vinha a ser conhecido o desejo de ser feliz. Essa função consistia no abandono a leis divinas comprovadas por palavras escritas por entidades desconhecidas às quais, num gesto raro de união, se decidiu dar o nome de Deus.

Pouco antes de todas as mortes a entidade era invocada e, uma qualquer forma de liquidar a existência, activada. Isto permitia a aproximação dos demónios entre si, uma vez que estava previsto nada os poder deter. Nesta altura o silêncio tomava o lugar da tenebrosa sensação de ruído elevado à máxima potência sem que nada pudesse ser feito para o parar.

Se o desejo fosse o de fechar os olhos então buscaria de novo a cortina vermelha onde se encontravam as respostas a todos os enigmas.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

033 as viagens sem chegada

Porém o desejo de transgressão evoluía muito para além da simples aritmética originada das falsificações por si perpetradas, como se não tivesse medo de ser apanhado e conotado com alguma minoria sempre presente nos manuais de bem roubar sem depressa ser apanhado.

Eram puros delírios os momentos em que se dedicara a cozinhar uma vida simples contemplada no final com um  caixão sem qualquer motivo indicador de glória ou regresso à vida. Tratavam-se de viagens sem chegada, em que a vida se transformava num joguete em que eram descurados cuidados primários como evitar aquelas doenças das estatísticas. Apetecia corromper aquele desejo de nada, e era fácil quando alguém lhe manifestava a beleza da vida, tornava-se então evidente que tinha que adiar esse momento radical, que seguramente mudaria todas a relações que mantinha por esse mundo fora.

A porta da rua estava frequentemente aberta e com rara estranheza não lhe roubavam nada, nem sequer lhe destruíam a harmonia caótica com que sobrevivia aos dias mais cinzentos que lhe trespassavam os olhos em direcção à alma.

Ao mesmo tempo o telefone não parava de tocar, chovendo os convites de naturezas opostas apesar da característica única que os acompanhava, uma viagem sem regresso à monotonia anterior. Claro que a sua frontalidade facilmente desmoralizava qualquer tentativa de reaproximação ao objectivo final. Ainda assim dava resposta positiva aos que tinham a paciência de pedir uma segunda vez. 

Foi num desses encontros triviais que tomou conhecimento com uma vida alterada por circunstâncias algo caricatas. Cedo se interessou pela possível desgraça, mas igualmente tornou-se um aluno notável em técnicas de venda de almas, sem que a vítima sentisse sequer ter capacidade de contrariar essa cabala movida pela pura maldade.

O resultado final levou à aproximação de demónios relativamente poderosos, das suas imensas aptidões como pirata de almas absolutamente virgens da maldade que permitia alimentar-lhes o poder, transformando-as em aprendizes de demónio, sofrendo as mais atrozes torturas que, segundo a hipotética lenda, podiam levar à dor eterna, sem que fosse permitida qualquer intervenção apaziguadora.

domingo, 15 de agosto de 2010

032 os teus lugares

Porém o desejo de viver algo mais terreno era mais forte que qualquer sonho baseado nas premissas dos quadros de Dali pelo que a conta da farmácia ou do traficante de uma esquina perto de si, era um perfeito disparate que amotinava a concretização das tarefas mais simples, tornando-as tão ou mais utópicas que as ditas irrealizáveis.

Lembrava-se do pessegueiro e do limoeiro em frente a um alpendre, a perfeição para a fuga à cidade. Olhando em frente via o vale verdejante que se estendia até ser interrompido pelo céu, o que lhe recordava um filme de John Ford que queria estrear na sua sala privativa de cinema quando tivesse dinheiro para tal. Não sendo impossível de alcançar abandonou facilmente a ideia  quando a alma urbana se interpôs aos desejos puros do coração dilacerado.

Foi sempre em busca de uma nova história para se agarrar de novo à vida, como se o coração tivesse vontade e alma própria, asilando-se do seu corpo pela eternidade. Felizmente também se dava conta que algumas lágrimas derramadas em silêncio lhe eram dirigidas, adiando a inevitável conclusão para algo natural e imprevisível.

Entretanto tornava-se urgente viajar no tempo, de maneira a compreender os fantasmas que se iam amontoando em cada lugar que passava.

O vale era substituído por uma paisagem de betão e o alpendre de vistas magnificas por uma secretária equipada com computador e papeis vindos das profundezas de um inferno que se constituía como a superfície visível daquilo que lhe diziam ser uma vida segura. Os olhos pesavam facilmente e as mentiras constantes que o rodeavam apenas provocavam um vazio total apenas passível de ser preenchido com golfadas violentas de álcool. Quando o concretizava apenas lhe provocava mais mal-estar, despertando noutro lugar e na única e indesejável companhia de uma ressaca, seguida de um telefonema de alguém preocupado com a sua saúde, algo que na realidade lhe era indiferente.

Ao fechar de novo os olhos abriam-se as perspectivas de sempre, quer em forma de pesadelo ou de uma qualquer sessão de amor com uma desconhecida, que apenas lhe acentuavam a vontade de fugir, sobretudo dos medíocres momentos de fugaz segurança que lhe davam um trabalho que apenas lhe motivava o desejo de acelerar o suicídio.

sábado, 7 de agosto de 2010

031 imensas revoluções

Queria ter a coragem necessária para mergulhar num lago infestado de crocodilos e saber se sairia de lá vivo sem qualquer arranhão. Este como outros pressupostos levariam a que facilmente o acusassem de uma qualquer doença mental, necessitando de medicação contínua e possivelmente sendo abandonado pela família quando se tornasse um estorvo financeiro.

Porém, a idiotice e os actos tresloucados guardava-os para as imensas revoluções que tinha previsto colocar em prática. Isso excitava-o mais do que largar o sémen dentro da mais bela e carnuda mulher. Se tudo era efémero, decerto que a possibilidade de mudar o mundo ainda o era mais que foder até o sexo ficar em ferida.

Vivia na montanha de onde podia ver as casas a picar todo o chão disponível, sugando toda a espécie de energia que pudesse envolver os terrenos dessacralizados. Bebia dessa vontade de sonhar a criação, aliviando a tensão assassina que crescia desalmadamente dentro de si, através da execução de pequenas tarefas que punham a polícia em alvoroço, o ministro sem saber muito bem o que fazer, o povo sem tomar banho em Agosto. Ainda assim tinha tempo para se enfrascar com uma qualquer cerveja certificada como melhor do mundo. Consta mesmo que o chefe da equipa de investigação era o seu melhor amigo, o qual se gabava insistentemente que iria resolver este caso em tempo recorde, sendo promovido a uma qualquer patente que o tornasse intocável, ou seja, tornar-se-ia um corruptor inalcançável.

Tudo era fruto das condições abjectas a que havia chegado um país onde os principais cérebros se tornaram terroristas sanguinários, sem que houvesse alguém que fosse abertamente contra isso, a trivial apatia que nem obra do diabo era. E voltava a pensar nas suas revoluções, no extermínio da santa estupidez e sem que tivesse decidido converter-se ao satanismo que proclamava este defeito como o pior de todos eles.

Em dias de calor intenso mais pareciam serem os mosquitos os revolucionários atacando cada humano de sangue mais doce com as suas infectas picadas e que só a estes afligiam. Era certo que qualquer mosquitocídio seria sempre uma boa notícia, quer para os humanos, quer para os que pudessem visitar a Terra em investigações secretas. Talvez fosse a hora de algum empresário do ramo farmacêutico se queixar do fim da principal fonte de transmissão da malária e promovesse o lançamento de uma nova bomba atómica para saciar a sua raiva.

prólogo

Arturo e Flor, desta vez não se seguirá a normal história de amor e os vícios escaldantes de relações que acabam em visitas ao consultório de algum psiquiatra psicopata. Nem sequer se mencionam os nomes, essa coisa fica para depois.


Anjos nem vê-los, apenas os sete diabos que entram dentro de um peregrino louco que confunde sonhos com realidade. 


E o pior é que a salvação do mundo antes anunciada nem sequer é do lado do bem, muito menos do mal, apenas umas valentes dores de corno afectam o Paraíso e o Inferno e o fulano a que se ousa chamar herói um mero corruptor de almas e conceitos...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

030 surpreendentes ofícios

Arturo é o seu nome, homem de surpreendentes ofícios. Largou uma vida economicamente viável por um destino mais próximo da felicidade, mesmo que isso implicasse  contar todos os centavos e a possibilidade de ter de roubar para sustentar a sua família.

Claro que as cortinas vermelhas, a certa altura da sua vida lhe deram uma visão clara do significado dos sonhos que de certa maneira, algo negra, quase o atiraram para uma pira funerária, por via do suicídio.

Porém, apesar de não perder dinheiro nos jogos de azar e ainda assim ter o cartão de crédito usado no limite, foi-lhe fácil juntar o dinheiro que precisava para a viagem da sua vida, sempre com o pensamento posto na mulher que lhe daria o prazer de ter uma vida normal, até que a morte os separasse. Como disso nunca teve dúvidas, foi com naturalidade que lhe apareceu na vida a Flor, mulher de muitas qualidades, mal casada, com uma erva daninha que lhe ia obliterando a vontade de ser feliz, afogando as suas mágoas em cerveja barata e nas noitadas de jogos de cartas com as amigas, enquanto as quatro filhas iam crescendo de forma acelerada, enchendo-lhe a paciência, finita.

Curiosamente conheceram-se no bar para onde ele foi trabalhar, ela ia com outra rapariga e nada os faria prever o vendaval de emoções que esse dia inócuo veio a revelar. Ela bebeu um café, enquanto ele tentava saber de um quarto para se hospedar. Ainda nesse dia foi-lhe apresentada uma rapariga de nome Elena que nunca chegou muito a saber o que fazia ou de onde vinha, apenas se aproveitava dele com histórias mirabolantes a que ele teve de colocar um ponto final para não correr o risco de ser preso.

A pouco mais de quinhentos metros vivia Flor e as suas quatro rosas de um canteiro que precisava ser melhor estimado. Por um acaso do destino e apesar das noites mal dormidas Arturo tinha sempre a companhia de Flor pela manhã, fosse no autocarro ou a pé.

O tempo era instável, assim como Arturo aguardava pacientemente por aquilo que sabia ir acontecer, embora não soubesse com quem. Flor descobriu nele o marido perdido em noites consecutivas de bebedeira, até que se foi de vez trabalhar para outra cidade. Flor aproximou-se de Arturo como que espantando fantasmas de uma vida mal resolvida.

No meio do Verão quente, Arturo mudou para uma nova casa e por detrás das cortinas vermelhas amou Flor como nunca havia amado ninguém!

029 gerações de poetas obscuros

Aquele sonho de um dia publicar fora finalmente concretizado. Claro que todos vaticinavam desgraça, à partida porque não era conhecido, urgia trabalhar a coisa, só esse trabalho e tirar as pessoas do seu comodismo crónico tirava as hipóteses de venda imediata massiva.

Ficava por plantar a árvore e fazer nascer um filho. E assim regressava ao presente, em que a descrença continuava a ser um ponto assente na sua vida, ou talvez fosse apenas um problema da sua cabeça, pensar que ninguém queria saber dele, era apenas o medo de cair na mais absoluta solidão. Sim, aquela solidão cheia de gente, palavras vãs e sentidos ainda mais ocos. Quando se juntava o Verão à questão e o suor abundava deixando os odores que o enojavam a cirandar por cada canto onde se encostava, era tempo de acreditar que pertencia mesmo a uma geração de poetas obscuros, que se juntava na glória efémera de uma qualquer antologia que ficava para a memória num vídeo colocado no youtube e ainda mais na conta bancária do comerciante coordenador da mesma. Nem se tratava de vergonha o facto de ter deixado de divulgar algo que apenas devia de ser separado da sua pessoa. E quando lhe contavam aquelas histórias de fulanas que se apaixonavam por assassinos famosos, abrindo toda a sua intimidade ao desafio da imaginária possibilidade de passar a ser a vitima final de algum ser abominável aos olhos da sociedade, que estimula, protege e os negligencia. Claro que fazer parte de tal clube só se tornava possível pelo desleixo a que fora votado esse dom, tardiamente estimulado, desprezado e depois colocado num limbo aparentemente sem saída, apenas porque buscava pela vida normal de um humano anónimo.

Ainda assim o desejo habitava-o como se entre cada batida do coração estivesse a graça de um Deus que até lhe dava jeito que existisse, apenas para pôr ordem no caos interno que era a relação consigo próprio e que distorcia a realidade circundante.

Esses eram dias de profunda amargura, em que nem o desejo carnal ou uma moca bem induzida faziam esquecer, esse desejo premente de fazer parar o sangue que corria nas veias. Pelo menos assumira perante os seus desejos mais íntimos aquilo que queria, apenas era necessário manter um segredo, o que a não acontecer provocaria a sua queda pela eternidade se voltasse a renascer igual ao que era nesta infindável encarnação.

Ela decerto que o entenderia melhor se falassem a mesma língua, mas a maldita tristeza era sempre algo de muito superior a qualquer norma de felicidade imposta ao estilo de vida de cada um.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

028 lugares proibidos da miséria

O namoro começou bem. Cedo deu lugar aos sorrisos e ao sexo desenfreado que o seu corpo já esquecera. O tempo, recomporia tudo, sobretudo o desejo de amar e ser amado.

Foi atrás das cortinas vermelhas que se deram algumas das primeiras manifestações de amor mútuo, apesar da natural indefinição e do teatro provocado por um paneleiro assumido que tentava torná-lo num pérfido matador de lares compostos de costumes, não de amor. Mas ele mostrou bem o seu verdadeiro carácter, mesmo mentindo, alcançando a necessária indiferença de outra corja de frustrados que tinham como desporto favorito as bebedeiras diárias e o espancamento das suas mulheres, por amor, como se a miséria provocada por esses actos cobardes fosse afinal um acto necessário e normal. 

Apesar da submissão aparente dela, cada dia novo foi a constatação de que aquele pedaço de paraíso onde se amavam estava vedado aos fantasmas residentes em almas para quem amar fazia parte de ser proprietário e não de partilhar.

A força do amor foi-se manifestando naturalmente e o sonho sempre adiado de ter um filho tomara outra forma com a presença daquela super mãe, repleta de tantas fraquezas que a tornavam ainda mais bela de coração. Decerto que nesses lugares proibidos da miséria não se esgotaria um amor sempre em fase crescente, muito menos se esvairia o desejo e a força de vontade de lá sair rumo ao conforto e bem-estar que ele gostava de se proporcionar e a todos os que o rodeavam.

A mulher da sua vida houvera passado tempos de difícil digestão, com as suas memórias tristes que, ainda assim, não lhe impediam o sorriso ao entrar em casa dele. Um verdadeiro bálsamo depois de chegar  cansado de um trabalho para o qual se sentia envelhecido antes do tempo. E, pela mesma razão que sentia a chama de um amor que o atormentara sem sequer o habitar, tornava-se imperioso deixar de perder tempo com problemas que não eram mais os seus.

O mundo estava cada vez mais apodrecido, mas ainda se estava a tempo de colocar em prática o egoísmo necessário para praticar a ansiada vida normal.

No alto de uma montanha onde se escondera de uma vida simples e que tanto desejava, via apenas um silêncio que agora sabia ser de ouro.

027 contos que nunca escreverias

Certo dia foi confrontado com algumas folhas dispersas que versavam acerca de um período conturbado em que mantinha uma relação intima com o conteúdo das garrafas de whisky, quase sempre terminadas por aguadas dores de cabeça e maremotos estomacais dos quais guardava poucas memórias. O rubor nas faces não indiciava vergonha, apenas uma súbita raiva pelo vil manuseamento daquelas folhas preciosas onde haviam penetrado com intenso ardor os seus pensamentos. Preferia sentir a casa vazia de críticas a ser confundido com uma realidade baseada em oníricas sensações vividas por um personagem que não lhe dera para desenvolver adequadamente. Pouco depois desse confronto subia-lhe mais sangue à cabeça e uma profunda raiva, consubstanciada com um demoníaco desprezo que o punha a gritar até sentir os pulmões a pedirem asilo do próprio corpo. 

Eram momentos em que a ideia de morte se sobrepunha às mesquinhas vontades de quem se dedicava a maldizer algo de que se afastara de livre vontade. Pegava então numa caneta e escrevia desalmadamente até a mão lhe doer, como se fosse um acto masturbatório que o aliviava temporariamente. Depois copiava para o papel as dores saídas de lágrimas abandonadas a um vento raro que parecia ter vontade própria e ambições de destruição da harmonia. Encostava-se ao sofá tecnologicamente avançado e delirava com a promiscuidade mantida com as letras que se amontoavam em cadernos negros, de magia, sem segredos. Fechando os olhos poderia imaginar os cenários pretendidos e encostar a imaginação ao infinito, colhendo a paz ansiada directamente na sanita, colhendo amargas revelações que apenas tinham o condão de precisar que a sua imaginação se regia por comprimidos que lhe alteravam a percepção, deixando a nu os monstros escondidos nos pesadelos, cada vez mais frequentes. Era comum que depois de algumas centenas de palavras as pálpebras pesassem e as vértebras cervicais se queixassem admitindo a possibilidade de ser mais um no bloco operatório daquele hospital em que juntavam operados à coluna e à cabeça, com a respectiva loucura adjacente para os que necessitavam de repouso absoluto. Era mais provável levantar-se de novo da cama e ver uma daquelas histórias improváveis da televisão.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

026 longínquas vidas

O passado era uma espécie de castigo que o impedia de abraçar qualquer espécie de relacionamento. Foi assim durante grande parte da vida em que devia ter-se dedicado a mais bebedeiras e momentos sóbrios com maior qualidade. Certo era que em cada momento que se afigurava como presente dava graças por poder compartilhar a vida com uma mulher a quem não prestara a devida atenção no inicio de uma relação cada vez mais sem fim à vista. 

Quando se afastava desse presente era como que o fantasma de longínquas vidas, que lhe haviam moldado a alma para esta encarnação, voltassem sobre a forma de um pesadelo em que um homem sem cara se deixava cair tranquilamente sobre um manto de pregos ardentes que lhe arrancavam a pele sem o fazer desfalecer. Claro que acordava suado e com vontade de fugir da cama vazia, dos tormentos por que passava até o despertador tocar.

O que o preocupava mais nem era ficar desempregado, apenas não poder aplicar num herdeiro do seu sangue alguma da sua vontade de viver num mundo menos negro, como se assim fosse mais fácil aceitar a rotina imposta pelo coração.

Porém as sementes plantadas estavam dinamitadas e as ervas daninhas cresceriam sempre mais que a natural composição de flores que apenas seriam uma modesta falsificação de um projecto de vida a que faltaria sempre o elemento surpresa, propositadamente esquecido com a desculpa de resolver problemas que ficariam sempre para além de uma vida incompleta. E seria delicioso saber o composto de uma vida completa, como se o auge da contemplação humana lograsse ultrapassar a sua maior invenção: o divino.

Apetecia beber um cocktail, daqueles bem misturados por mãos experientes, que depois escorregaria garganta abaixo da mesma forma que algumas mulheres iluminadas têm os seus orgasmos. Sorria diante desses feitos de despudor total, e ainda perante a máquina infernal dos distribuidores de almas pelos diversos cantos aos quais pertenceriam, por decreto ou mistificação consubstanciada, as moedas frequentemente abandonadas na caixinha dos pobres da paróquia mais pequena do mundo cuja localização só ele conhecia.

Ao abraçar as memórias que o ligavam a um passado para além das cortinas vermelhas, que o separavam do presente, sentia as vidas em si a palpitarem de desejo por algo diferente e desconhecido.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

025 as cidades crescem

No meio de tantos gemidos, orgasmos e intensa vontade de copular, ele ia vivendo a sua vida. Decerto que o presidente da junta de freguesia aprovava o desejado acto, sobretudo se dele resultasse mais um natural da terra. A bonificação era assaz apetitosa e não era difícil imaginar as orgias secretas entre alguns dos pares mais bonitos, sem preocupações de cornos ou posterior cor da cara do filho. 

Tendo-lhe chegado aos ouvidos este plano de crescimento e ciente da sua capacidade reprodutora diante de algumas fêmeas insaciáveis, nem se preocupou com a possibilidade de ser pai solteiro, incógnito ou posteriormente acusado pelo famoso teste de ADN. Podia dar-se o caso de um filho ter um pai maricas apenas porque a mãe passara a ter asco aos homens e assim podiam educá-lo sem ter de empinocar. Umas vezes a ideia agradava-lhe, mas quase sempre se deprimia perante o espectro de ter um herdeiro que nem sequer era reconhecido como seu, apesar de o ter parido primeiro e um dos seus milhares de espermatozóides ter vencido sozinho a batalha de entrar dentro do óvulo.

Porém, depois de fantasiar tudo o que se lembrava, , voltava sereno à realidade, abraçando a namorada por quem sentia algo bem mais profundo que uma mera paixoneta ovular. Tudo isso somado à responsabilidade pelas filhas e o prazer que a ele lhe dava ter uma mulher assim, fazia o desejo de traição ser um mero devaneio.

Era possível que tantas casas vazias viessem a ser ocupadas depois de posta em prática a mais radical medida anti-crise. Decerto que os bebés voltariam a chorar apenas por nascerem e que os parques infantis voltariam a a ser motivo de agendamento de brincadeira com o afluxo desmesurado de petizes. Ao menos que esse crescimento servisse para renovar o sangue estagnado que atrofiava os pensamentos de adultos mal-amados.

Fosse ou não por decreto ele tinha esse desejo intenso da paternidade, atingindo assim o patamar mais alto da sua vida (inclassificável): uma vida normal.

Ainda assim seguia coberto por um manto negro de dúvidas pelas ruas envelhecidas de uma cidade mal cuidada. Houvessem essas crianças anunciadas no decreto e com uma manifestação por elas criada a vida se agigantasse, que a pequenez provocada pela falta de motivos racionais para sorrir, chorar ou simplesmente berrar era algo a que todos pareciam condenados.

Ao sentir as cidades crescerem os adultos deviam infantilizar os seus propósitos, prometer nunca mais crescer a sua perfídia e assim deixar o mundo livre dos caos climático, alarve vermelho e desejo de morrer a dormir. Não, essa pressão de crescimento nunca fora benéfica e assim ele não conseguiria ver o mundo com as cores que ele tem, o verdadeiro mal eram as pessoas refugiadas no negro absoluto da cegueira, o cérebro recusava-se a pensar e a aceitar novas propostas de mudança.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

024 hoje escrevo e odeio

As noites em claro são memórias más, mais cedo ou mais tarde a cabeça começa a funcionar com erros e o pensamento desmorona-se ao ponto de aquilo que para qualquer um é iluminado não passar de trevas sem solução para quem se sente no fundo do poço.

Claro que podia ser uma noite de São João numa praia junto ao Mediterrâneo, com uma pessoa do sexo oposto, preferencialmente nua e o corpo cheio de pica para foder. Dessa praia apenas tinha as memórias caseiras, do carro antigo, onde se arriscava a uma prisão por conduta obscena, muito embora apenas se lembre da fulana que falava em matar-se após um orgasmo, chorando de saudades pela picha que lhe subia mais acima do umbigo.

Subia-lhe à cabeça visitar o passado e encher essa cretina de esperma na boca, apenas para que se calasse. Pensava nisto e sorria, a sua mente ainda conservava alguma perversão que lhe proporcionava erecções despropositadas seguidas dos naturais embaraços das senhoras de idade que supostamente já não teriam disso em casa. Porém não era consumido pela vontade de se acalmar pela via da masturbação, até porque, convém recordar, essa coisa da morte no momento pós-orgasmo tinha passado à história. Falava-se de vida, de projectos definidos mesmo que futuro não proporcionasse nada daquilo que lhe vinha à cabeça em cada instante do presente.

Era possível que Nossa Senhora o protegesse, apesar do ódio que o consumia, até porque no seu sonho recorrente, em que as cortinas vermelhas quase o sufocavam, era igualmente presente uma tremenda sensação de paz, que o fazia acreditar que a Mãe de Deus daria o correctivo necessário ao seu Filho absolutista de forma a que o sofrimento na Terra passasse a ser apenas e só objecto arqueológico de estudo pela futura humanidade.

Em vez do ADN o potencial criminoso passaria a ser identificado pela densidade óssea onde, no período de gestação, haviam sido inseridos pós microscópicos por nano criaturas rebeldes e em permanente mutação. Essas partículas eram expiradas dos pulmões do Imenso Ser Divino que governa todos os deuses da humanidade e todas as criações destes, numa galáxia muito para além do ridículo conhecimento proporcionado aos abjectos e ignorantes humanos.

Seria a forma cientifica de aproximar a religião católica dos desavindos crentes, cada vez mais alheios à concretização de um mundo viável segundo as ordens emanadas do ALÉM  ABSOLUTO, assim com letras grandes para que não restem dúvidas sobre o verdadeiro embuste que o ser humano provoca e o seu semelhante.

Era-lhe impossível escrever e não sentia ódio, vivendo numa terra chamada Castelo do Queijo, onde as pessoas eram de tal forma retrógradas que mais parecia o padre ser um desavindo de Deus. Claro que só ele sabia o quão fiel era às Sagradas Escrituras, o fiel depositário da sua mensagem naquela paróquia.

Depois abria os olhos e de vermelho apenas as cortinas, o queijo limitava-se ao odor exalado do seu corpo que depois se entranhava fundo na fronha da almofada barata.

sábado, 19 de junho de 2010

023 o teu rosto enevoado

As memórias que o faziam ausentar-se do corpo cansado de não fazer nada eram cortados pela abrupta sensação de que para além das improvisadas cortinas vermelhas havia algum muçulmano a rezar, mesmo na varando apenas esperando algum deslize bíblico para desintegrar o corpo em nome do seu deus. Para além de delírio constatava ser uma premissa válida que apenas o atormentava mais, apesar de não ter filhos e muito menos frequentar mercados apinhados de gente despreocupada pelas possibilidades dadas por cada um dos deuses em que acreditavam. 

Olhava com mais atenção e não passava de um mero pombo que depenicava algo que por ali caíra, vindo do andar de cima, possivelmente um pão inteiro que ia secando enquanto todos os dias ia sendo comido, sem o medo do fim do mundo que consome todos os supostos seres racionais. 

Sabia-lhe melhor a tese da conspiração, como se fosse um pretexto para manter a obscuridade de uma casa que lhe provocava insónias. Outra vez delineava-se um rosto, previsivelmente feminino embora a sombra tapasse as delicadas feições, os insinuantes trejeitos e a possibilidade de adivinhar um qualquer pensamento pelo odor exalado. Parecia-lhe o rosto enevoado da mulher que urgia amar e assim já podia fechar os olhos, substituir os pesadelos recorrentes pelo amor, que não tinha de ser apenas imaginário.

Visualizar aquele rosto imaginário apenas lhe trazia tranquilidade. Ao ligar o obsoleto equipamento de som que jazia ao lado da cama era uma forma de esquecer-se do ar frio que se abatera por aquela zona sem vontade de partir. Sorria sem saber para quem, apenas sentia que um qualquer amor o tinha seduzido para viver uma vida normal, a dois, com rotina e pedaços de gelatina depois do almoço.

O telefone costumava tocar pouco depois de adormecer, caindo num breve sonho idílico, era a sua namorada avisando que estava para chegar. Era real o amor que faziam, e que o rosto enevoado dos sonhos se transformava em realidade, talvez com encanto, seguramente carregado de doces dificuldades que apenas aumentariam do zero o gosto pela vida.

Sim, as filhas e a constituição de uma família, não porque é normal, mas apenas porque só isso o tornaria feliz, era o seu desejo e ele já o sabia há bastante tempo, mesmo antes de as conhecer.

Quando abria os olhos a consciência que o habitava não desvanecia o sonho, sentia-se dono do seu mundo e longe das utopias irrealizáveis, em que uma miserável conjugação de factores o iriam impedir para sempre de sentir a força de um amor puro entre homem e mulher   devidamente consubstanciado com um possível filho do dois.

sábado, 12 de junho de 2010

022 o tempo de regressar

O avião era sinónimo de regresso, apenas e só, porque mesmo quando ia levava a sensação de deixar um abraço a alguém que às vezes pensava nunca mais ir ver. Porém esse regresso era feito de encontros inesperados, quase sempre saídos de uma surpresa que às vezes se tornava desagradável.

O regresso era sempre físico, que a alma quebrava-se em mil e um pedaços de nada, sem nada o prever voltando a formar almas obedientes para construir a maior e histórica derrota de um socialista que apenas omite as suas falhas perante a possibilidade de governar com maioria absoluta. Presumivelmente a história da gaveta e do socialismo guardado nem para brincadeira servia, tais eram as atitudes mafiosas que punham em questão a própria sobrevivência da liberdade de votar, ou nem isso.

Isso fazia-o lembrar-se do primeiro regresso em que as lágrimas quase caíram dos olhos ao ver a cidade natal do ar. A hora, essa, já não era propícia para votar, que nesse dia havia eleições legislativas e quem teria ganho nesse dia era um exercício a que não queria sujeitar o seu cérebro desgastado, antes a opção pela bazuca aos ombros e uma arma letal apontada à eterna continuidade no lodo, num sistema a que chamavam de democracia.

As coisas tinham tendência a tornarem-se obsoletas e o regresso aos locais de infância estagnada apenas o lembravam aquelas manias do ruído que não deixavam adormecer e das preocupações por assuntos que nem merecem ser pensados. Decerto que se esse regresso se tornasse definitivo os anti-depressivos regressariam à sua vida e isso punha-o pensativo na urgência de regressar onde não sentia essa necessidade de químicos atenuadores da pressão que o atormentava de tempos a tempos.

A alma devia mesmo existir e o desejo de nesse regresso ver todas as estrelas que habitavam no seu coração apenas era atenuada com o pensamento fixo em trivialidades como a falta de dinheiro e sobretudo na ideia que a diversão é sempre secundária perante ele. era sempre momento para concluir que o diabo existia e que deus apenas limpava as escadarias de acesso ao Céu, por falta de mão-de-obra, o que o deixava sem tempo para orientar as cabeças perdidas dos humanos cada vez mais enterrados num buraco vazio de sentido apesar dos efeitos coloridos que atenuavam a frustração de não ter o que se queria.

E depois havia sempre a partida, o regresso, não ao futuro, mas tão somente um encontro seguro com os desejos do coração, sem se deixar influenciar pelas ervas daninhas que eram quase sempre parte predominante no ecossistema que o rodeava.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

021 cinzento amanhecer

Descobrir qual a sensação de um amanhecer sorridente, inócuo e sem preocupações, eis uma espécie de missão que se afigurava impossível. Previsivelmente a solidão evitava discussões, porque as paredes têm ouvidos mas boca só em filmes de ficção cientifica. Então porque não coexistia com o seu envelhecer uma fórmula oca de felicidade que tão bem se adaptava a tanta gente que conhecia? Era algo que o deprimia ainda mais, apesar de se estar nas tintas para os outros, e os outros apenas lhe darem sorrisos e palmadinhas nas costas.

Esses amanheceres eram-lhe vedados, assim como a obrigação de se fixar onde nascera, algo que apenas lhe acentuava a vontade de se suicidar. Por mero acaso, ou não,  a sua mãe passou a ligar-lhe depois da hora de almoço. E dormia mal, pela manhã com o sono a acentuar-se pouco antes do telefone tocar. Era como se vivesse aquela canção do Variações, 'estou além', porque parecia estar apenas o seu corpo e a vontade de fugir elevada à potência máxima. Claro que tanta carga negativa apenas lhe proporcionava a companhia de gente pouco dada a confusões de multidão e a opiniões quase sempre reveladoras de austeridade. Talvez por isso não se atenuasse a vontade de fugir, algo que ia congeminando há muito tempo e que o levaria ao destino mais que provável da passagem para a tranquilidade.

Essa fuga ia sendo adiada vezes sem conta, quer pela sua inércia perante as complicações, quer por uma tremenda desilusão por não ter com quem partilhar os amanheceres, algo parecidos com as noites sem fim do universo infinito para onde, desintegrando-se, queria partir em excursão definitiva, sem qualquer tipo de guia ou mensageiro que anunciasse novas ou meras ovas.

Ficar inerte na cama, por vezes arriscando um  poema sem sentido nem alarido era como que o bálsamo para a sua mente perturbada pelo vazio, com que o mundo louco que o rodeava o tentava preencher.

A sua sorte foi a de se deixar guiar pelos instintos, pelo que qualquer passo menos afortunado ao menos dar-lhe-ia a sensação de ser a melhor decisão possível. Não havia como fugir à vontade de encontrar a mulher da sua vida, que lhe proporcionaria os filhos com que tanto sonhava e que pareciam estar-lhe vedados pela maldição que lhe havia sido lançada aquando da sua adolescência.

Porém, bem mais tarde após alcançar parte do sonho restava-lhe a sensação de que apesar do Sol brilhar mais entre as sucessivas manhãs, era seguro que a vida teria poucos motivos para celebrar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

020 insuportáveis noites de novembro

A concentração tornava-se um martírio quando chegavam as chuvas mais intensas. Suportar aquela cama de casal sem companhia tornava-se um exercício quase penoso que, invariavelmente, terminava com despertares em estado de pura angústia. Às vezes o suor caía pelo rosto sem que sequer se atrevesse a mexer, não fosse algum daqueles possíveis fantasmas a revelação dos seus medos mais profundos.

Por vezes pegava numa caneta e tentava fazer um organograma que se tornava interminável tornando-se as pessoas, que nele deviam estar, descritas como meros clones de demónios para os quais não havia exorcismo possível.

Era possível que enquanto Novembro durasse o acompanhassem as brutais enxaquecas, pelo que se foi tornando cada dia mais alucinado. Os comprimidos para a depressão crescente limitavam-se a secar as lágrimas e a controlar uma fúria desmedida que exercia quase sempre contra si mesmo, e ia piorando todos os dias.

Nesta fase da sua vida recuperava de um acidente de automóvel que lhe custou muitos meses de vida, numa altura crucial em que estava prestes a tornar-se efectivo na empresa onde tentava demonstrar a qualidade do seu trabalho sem que os seus chefes se preocupassem ou tomassem como exemplo os bons resultados obtidos antes da fatalidade.

Mas outros Novembros se seguiriam, sem os comprimidos, talvez com a noção de que as coisas deviam ser feitas com tacto, por isso encarava como castigo que a namorada lhe pusesse na boca palavras obscenas que ele não sentia, sendo-lhe impossível admitir que as tivesse proferido.

Seria tudo mais fácil se arranjasse a coragem suficiente para se suicidar, porém quanto mais pensava no assunto mais lhe vinha à memória a gente no mundo que o amava, sem falar no presente, um sombra que se escapava e o fazia pensar que a coragem era permanecer vivo.

Era então o tempo dos desamores que o levavam a pensar emigrar para o hemisfério sul, num daqueles paraísos onde era sempre Verão e o clima a vários quilómetros de altitude se dilacerava tornando a presença de artefactos e vida humana uma aventura com destino pouco feliz. Pelo menos as estatísticas não mentiam, tanto para o bem como para o mal.

Outras vezes, de sorriso estampado, num rosto cansado de não sorrir, viajava por mundos infinitos de paixão absorvendo energias que invariavelmente se transformavam em momentos positivos criando uma barreira protectora que impedia as almas penadas de se juntarem com os seus falsos propósitos a um ser predestinado a algo mais que uma possessão demoníaca.

sábado, 22 de maio de 2010

019 obsessivamente o mar

Ao recordar aquela data longínqua e a mão a deslizar pelas costas suadas de uma outra mulher que amou, já não sentia saudades da inocência que o fez gastar vidas sem fim, como se fosse uma horda de gatos consecutivamente aniquilados para perpetuar a sua estupidez. Agora que se passeava pelos cantos sujos de uma cidade onde tal gesto podia dar prisão, aproveitava para acariciar a mão pouco macia da mulher com quem ganhara uma nova vontade de viver.

Era-lhe fundamental estar perto do mar, como se essa aragem proveniente das profundezas do mar, ali disponível lhe revigorasse a alma, enviando estímulos para o corpo inteiro que faziam desaparecer as energias nocivas que se acumulavam dentro de si, em menos de nada. Porventura poderia transformar-se num demónio, tanto era o rancor e desejo de vingança que o possuíam. A luz raramente descia das montanhas para lhe apaziguar os momentos de puras trevas e deixava-se deambular pelas zonas proibidas da cidade pacata que o vira nascera alguns anos antes.

As paixões foram-se sucedendo e com as frustrações acumuladas o racismo sobreveio e apenas lhe apetecia pensar no mar como destino talvez trivial de quem apenas quer viver. 

Não, essas memórias de uma mão suada pelo contacto com a pele de uma mulher já amada não passavam de mero envolvimento com seres daqueles que gostam de distinguir o sumo da essência carnal da alma sem fim, de ganhar tempo desnudando o corpo antes de se deixar envolver pela água do mar.

Se tivesse visto aquela onda gigante ficaria privado daquela excitação primitiva, sempre no seu pensamento. Certa era a alucinação que lhe percorria a alma não deixando dúvidas em relação ao motivo pelo qual deixava de se entregar, amar sem reservas e ter sessões ejaculatórias como tinha quando era virgem, apenas com a vantagem de distinguir em alta definição e na carne quem lhe chupava o sexo, saber de cor o sabor da decadência que lhe poupava o sofrimento dos dias vazios.

Em dias mais cinzentos, em que tomado por um acesso de loucura momentânea fugia de casa para mendigar às portas dos ricos, sentia como uma espécie de liberdade, poupando as facas que trespassavam todos os sonhos que ainda assim lhe davam a lembrar que o corpo funcionava e respondia de forma satisfatória aos caprichos da vida, enquanto ia distinguindo as sucessivas ondas gigantes que atormentavam a sua vida.