quinta-feira, 23 de junho de 2011

083 é tarde no teu rosto

Uma e outra vez tentava pensar em como lidar com os sonhos brutais que o acompanhavam no seu dia-a-dia vulgar, mas esbarrava sempre na tardia forma de um rosto que tinha de invulgar o sorriso desinteressado. Ainda assim era sempre tarde para alcançar qualquer tipo de zénite, pelo que se dedicava antes ao jogo, fosse virtual ou mesmo antes de qualquer coisa, a única forma de desviar os sentidos de um destino votado à indeiferença, como o de quase todos os que se glorificam com a glória alheia, com a auto-estima alimentada por banalidades, como ser fã de alguém que apenas tinha lançado o último êxito musical, pronto a mascar, ainda mais rápido a cuspir para qualquer lado e a ter destino igual ao da memória que ficaria de quem o expulsasse da sua boca. Estes e outros considerandos obrigavam-no a desviar as atenções da sua vontade de aniquilar as farsas de que se alimentavam os donos do mundo. Tal como nos seus sonhos, onde tinha poder ilimitado e agia em conformidade com essa realidade, era um pragmático, um maníaco consciente até ao mais ínfimo pormenor das suas limitações físicas, sem paralelo com a sua vontade de mudar o seu mundo. É evidente que estava à vista a resposta para a solução final, mas as pessoas olhavam sempre em direcções erradas, voltando à realidade quando os desejos já estavam trancados no cofre inacessível de alguns poderosos. Claro que esta falta de sentido de oportunidades só podia causar infelicidade. A solução de Arturo era fechar os olhos, acreditar que a realidade era a implantação da Sagrada Loucura, que o Bem e o Mal jamais seriam um pretexto para dominar os mais fracos, que os 72 em conjunto seriam a prova que nada interferiria nessa nova harmonia, feita de actos atempados, em horas próprias para o amor se declarar e as expressões faciais se soltarem, anunciando novos dias.

Ao abrir os olhos, apenas sobrou a crença num destino novo. se assim era e a revolução era para ser feita de pés bem assentes no chão, então já não desesperaria pelo regresso do ansiado narcótico. O vício por acreditar na vida devia ter a paga correspondente no avolumar de pistas que levassem ao caminho que por sua vez leva à felicidade.

domingo, 19 de junho de 2011

082 tardam as chuvas

Voltou a fechar os olhos. Quando os reabriu a rotina de mero humano tinha-se reinstalado, a força da gravidade mantinha-o preso ao chão e sentia a falta de Flor à distância de poucas horas de avião.

O frio apertava e o sono voltou a sobrecarregar as pálpebras. Todos os dias úteis apanhava os mesmos transportes, estabelecia fecundas relações de indiferença com os mesmos passageiros de destino aos quais respondia com exuberante silêncio. Claro que nessa vida sem aventura tinha um trabalho, crises profundas de desdém pelo esforço inglório a que se dedicava, apenas e só porque a doce Flor estava lá ao longe, apesar das poucas horas de distância que os separavam.

O frio apertava, os sorrisos custavam mais a sair, o corpo já nem se contorcia de dor pelo vento gelado, apenas seguia caminho, rumo a algo indistinto, talvez às chuvas que tardavam em chegar. Apenas ia, na esperança de que ao fechar de novo os olhos, os pudesse reabrir numa nova dimensão, com mais luz e fantasia, excitação e megalomania, amor e paixão, amizade e tesão, algo que tardava em chegar, tal como as chuvas.

É possivel que a melhor solução fosse o internamento num Hospital Psiquiátrico, já que ninguém acreditaria que um simples empregado de escritório fosse mudar as mais básicas crenças de qualquer ser humano. O bem e o mal estavam de tal forma enraízados na história da humanidade que sería obra de louco apregoar uma terceira via. Afinal como se chamaria essa entidade? Qual seria o seu raio de acção? Seria possível celebrar uma missa com rituais próprios a essa crença? 

No final apenas a certeza de que a morte vence tudo. Que os sorrisos e as esperanças, as vontades e energias positivas apenas eram fruto de uma programação caótica de uma entidade que, com todo o poder nas mãos, humanamente se deslumbrou até provocar o Apocalipse e recomeçar tudo de novo, num ciclo vicioso.

Enquanto isso Flor deixava o desemprego e as suas 4 filhas soltavam girassóis de dentro da alma apontando o real caminho do Sol. É possível que elas desviassem o pedaço de Terra em que habitavam do normal caminho a seguir. As pessoas passavam a ter um pouco menos de indiferença e alguns valores que haviam deixado de fazer sentido brotavam de novo de dentro de outras almas, ainda incorruptíveis.

sábado, 18 de junho de 2011

081 o inesperado visitante

As falhas eram algo de previsível, ainda para mais com 72 almas actuantes, todas imbuídas do mesmo espírito, sempre com a sua dose de independência mais evidente que o desejável. O envio dos demónios e dos anjos, mesmo a presença das entidades máximas do imaginário humano eram a prova de que, mais cedo ou mais tarde, abrir-se-ia uma brecha na muralha espontânea que se havia criado em volta dos peregrinos.

A missão da união era Arturo que a punha em prática, ele que aparentava estar onde nunca estava. O seu poder já havia ultrapassado todos os limites possíveis e imaginários e ainda assim dependia da perfeita harmonia com os outros que não podiam falhar, nem sequer ceder à sua antiga condição de meros humanos apesar de o saberem e sentirem o peso das consequências de cada vez que, sequer, pensavam nisso.

Vindo do natural nada surgiu o inesperado visitante e as fronteiras entre a condição humana e a divina haveriam de esbater-se sem que ninguém se desse conta ou o mundo estremecesse perante tão abrupta aparição. Arturo ficou ali, paralisado, de boca aberta, quase nem sabia o que dizer.

Ficaram algum tempo a olhar um para o outro, como que esperando uma qualquer reacção. Porém os sentidos não se deixariam tolher pelo medo e o misterioso ente que ali se revelava anunciou o que o trazia ali. Talvez fosse provocar orgasmos múltiplos ou apenas depressão profunda pela impossibilidade de excitação, o certo é que depois da surpresa inicial deram um abraço fraterno e materializaram duas bijecas, bem geladas, sem que a vulgaridade da garganta seca desmerecesse um qualquer acto mais consequente.

As células do coração começaram de novo a ser atacadas e a ira estava elevada ao expoente máximo, decerto que a aparente calma não passava disso mesmo. Aparência e que o regresso a uma simplicidade que julgara perdida era parte desse processo de aparência. O visitante segredou-lhe algo e desapareceu tal como havia aparecido.

Todo este expoente de loucura elevado ao infinito intranquilizou-o e lembrou-se dos tempos em que, mero invólucro de carne e osso, tinha que satisfazer alguns hábitos e rotinas. Vinha-lhe à memória o sabor de um bom café quente sem açúcar e sobretudo as caminhadas que por vezes dava com o seu pai.

domingo, 12 de junho de 2011

080 imensa serenidade

Os entes deixaram de ser misteriosos, as pessoas já se apercebiam que não era o mundo que estava a acabar, pelo menos a que tinham tempo para ouvir o seu próprio coração. Se havia destino ele não tinha que ser um fracasso anunciado, se valia de algo pensar naquilo que acontecia, também era possível alterar o estado de coisas, as premissas baseadas no medo para através dele dominar o seu semelhante podiam ser alteradas. Tal como os grandes segredos da humanidade baseava-se em algo muito simples mas de difícil acesso ao comum dos mortais, por quem tinha poder para lhe aceder antes e consequentemente escondê-lo das vistas dos mais simples.

Arturo estava na posse desse tesouro e era suposto ser exterminado por completo da face da Terra.

Nem sequer a memória deveria ficar de uma real alternativa à falsa liberdade em que os humanos vegetavam, uns mais tristes que os outros.

A calma que por vezes o cercava era algo de perturbador, como se a vontade de mudar estivesse realmente em marcha e a Ira vulgar dos actos mais mesquinhos apenas uma ilusão aterradora. Dentro do seu coração algo se instalara de forma definitiva como se estivesse condenado a uma dicotomia de contornos radicais e aleatórios na força de vontade em aplicar o bom senso. Uma forma de loucura guiada directamente por Sua Majestade Invertida Lúcifer. A Ira era algo a que não se podia escapar e a noção de que a paz efémera era uma realidade ainda acentuava mais o perigo a que Arturo se expunha.

Nada de novo no horizonte, com as facções opostas numa guerra suja que apenas teria fim à vista de duas formas:

- o Apocalipse tal como descrito na Bíblia
- a sublevação dos humanos, pondo em plano secundário todo o resto.

A calma imperava, mas apenas pela necessidade imperiosa de assim liquidar por completo qualquer tentativa de retaliação. É possível que a Sagrada Loucura antes de ser implementada no dia-a-dia de cada um fosse precedida de um banho de sangue, comandado pelo condenado Irael, retirado de novo do fundo do Inferno para a missão que nunca conseguia concretizar.

Entretanto tomava forma a distinta Sede dos Peregrinos da Sagrada Loucura, perfeitamente visível, ao contrário do seu secretismo, suficientemente audaz para refrear os ímpetos de destruição que os seus inimigos tinham guardados para ela.

079 debaixo do céu

E o Sol quando brilha nem sempre tem o dom de aclarar as coisas e os 72, que cada vez mais se pareciam com um bando de mercenários sob a capa de promoção da liberdade de pensamento, eram adeptos das execuções públicas dos que não o permitissem. Tornavam-se feios aos olhos de Deus, o oficial guardião dos corpos com alma e de Lúcifer que os preenchia com os seus demónios desprovidos de toda a boa vontade inerente ao chefe da família rival.

Ao Sol encontravam-se cadafalsos em fileiras a perder de vista e a voz torturada de Ian Curtis a debitar com profundo desespero:

«Where will it end? Where will it end?
Where will it end? Where will it end?»


As cabeças altivas de criminosos prontos a serem apenas demónios eram a parte que os peregrinos queriam salvar. Não porque os estimulassem a sua arrogância, muito menos a pretensão de espezinhar o próximo para benefício próprio, apenas a atitude de não subserviência devia ser salva para estimular a nova raça dos humanos, sem distinção de cores e aromas.

O que se via naqueles campos a cheirar a morte, era apenas uma conjugação de esforços do bem e do mal, para renovar o domínio sobre o que de mais miserável houvesse na raça humana, nunca a vontade de livrar o mundo das injustiças desde sempre impregnadas nos corpos humanos e suas almas em permanente desatino.

Ainda assim Arturo tinha dentro de si a força suficiente para manter o equilíbrio. É certo que promovia a força de vontade e o desejo nascido do mais profundo recanto de cada ser, mas e por isso mesmo tinha que reprimir todas as descaídas de um grupo que iria mudar literalmente tudo.

Debaixo do Céu não havia qualquer tipo de preconceito e a gravidade encarregar-se-ia de manter os pés no chão às entidades condutoras da vida e das facções transcendentais que provocavam os equilíbrios e desequilíbrios.

Flor ia-se encarregando dos ensinamentos às suas filhas, elementos por todos considerados destabilizadores, mesmo fazendo-os entender da necessidade de corrigir os excessos das parcas idades em que elas viviam.

Olhavam todos para o Céu, mas a salvação estava algures na Terra e seria esmiuçada até ao limite pelos poderosos, que tendo dinheiro faziam o que queriam, quando lhes apetecia.

Porém algo perturbou essa ordem demasiado perfeita para se constituir como um fracasso.

sábado, 11 de junho de 2011

078 pássaros de inexcedível voo

Já se sabe que voaram pelo mundo, mesmo invisíveis, apesar da visibilidade dos actos. As pessoas vinham sempre em direcção contrária ao que interessava, era-lhes indiferente o porquê das desgraças do mundo desde que não fossem parte activa das estatísticas.

Os 72 dispunham-se num círculo perfeito em cujo interior apenas existia vontade própria em estado absolutamente selvagem. Era um segredo a que os anjos e demónios não conseguiam aceder. Era apenas mais um motivo para que o real Apocalipse fosse apressado, porque ser Omnipotente não pressupõe acções activas de partilha. Por isso mesmo escolheram-se alguns humanos poderosos com quem se poderia formar alianças de inexcedível valor, uma oficialização velada da mais reles malvadez que abriria os fossos esquecidos de um Inferno sobrelotado.

A Deus interessava-lhe, sobretudo, aniquilar qualquer tentativa de partilha de poder e assim geria o mundo, apregoando os valores mais altos da mente humana, desresponsabilizando-se de qualquer uso menos próprio. Era o perfeito incentivo ao Caos e Destruição, corrompendo-se boas intenções, alegrias e desejos efémeros. Tudo isto só se podia entender sabendo colocar em prática o tumulto dos desejos, fantasias muito para além do mero pão para comer.

De entre todos os peregrinos havia um que sublimava ainda mais a inexcedível sensação de planar sobre num planeta ferozmente belo e por isso mesmo alvo de vil tortura. Longe de imaginar todos os segredos que viviam no limiar de um desejo confundido com loucura, o peregrino ganhou dos seus pares o cognome de Terra À Vista, tudo apenas para resgatar o fundo do desejo das tempestades inóspitas dos corações irados. Apenas lhe faltava uma auréola, o que o aproximaria perigosamente de uma das facções. Porém Arturo tinha outros planos para as possíveis fraquezas deste companheiro numa luta ilusória pelo poder do Bem como bem absoluto e iluminador das consciências. Pegou nele e afastou-o de uma luta que o levaria à aniquilação. Aproximaram-se da fonte dos sentidos e obrigou Terra à Vista a abandonar qualquer tentativa de rebelião que sabia ter dentro de si. Era apenas mais um passo para canalizar as energias na direcção certa do Destino.

Qualquer baixa nos 72 provocaria desequilíbrios irremediáveis que atrasariam ou até mesmo terminariam com a missão a que estavam destinados.

077 os vestigios da tua boca

Parte da essência da sagrada loucura era encontrar vestígios de amor em corpos sedentos da vida que teimam em obliterar, em nome do bem ou do mal. Nem sempre era fácil olhar para um ser humano mais dotado fisicamente sem dar graças a um qualquer tipo de perfeição que às vezes não passava de uma mera Fata Morgana. Se encontravam duas bocas unidas em desvarios de paixão, decerto que no final ficariam os vestígios, as impressões irreversíveis de algo eterno, de algo mais não era que o preâmbulo de um forte tesão limitado pelos preconceitos incutidos desde sempre.

Dentro do amor moravam alguns peregrinos, não tantos como se poderia pensar, apenas os suficientes para lembrar que não só era fundamental saciar o corpo, como aprender com a pureza inerente a uma criança de 5 anos, em busca de um qualquer reino encantado de satisfação de exigências e imbuída da inocência que apenas provocaria sorrisos a um adulto, este já com a crónica doença da falta de tempo e da simples noção da realidade.

Esse amor, que passava de boca em boca, deixava vestígios de saliva, pedaços de perigosa sedução pelo grande sonho de quem quer que seja que o tenha: uma vida normal!

Podia então tentar-se saber qual era o prédio onde morava o amor. Havia quem tivesse tomado logo a decisão radical de amputar o desejo de angústia. Algo estranho, porém, sem qualquer problema, sem holofotes, sem qualquer história tornada secreta apenas por obscuras razões comerciais, foi tomar de assalto os olhos cegos à novidade: o amor num prédio. E porquê tamanha falácia?

As pessoas haviam sido de tal maneira levadas a pensar que o mundo era um lugar perigoso que a única forma de se protegerem era dando a sua liberdade a um punhado de bandidos, o que acentuava ainda mais o medo. Então escondera-se o amor num daqueles sítios iguais a tantos outros, para o proteger com maior eficácia dos ladrões da mera felicidade.

O amor e o calor humano a ele ligado estavam assim em silêncio, em busca de um qualquer receptáculo que os quisesse tomar de assalto. Com a certeza de que outro clone sem os defeitos habituais estava ali, pronto a sair para o mundo, sempre com a mesma pujança inicial, sempre com o mesmo baixar de braços progressivo à medida que fosse crescendo. Ainda assim, ali estava, pronto a ser tomado por quem o conseguisse enxergar. Nem que o preço a pagar fosse o de regressar aos tempos primitivos em que o mundo era uma imensa descoberta. Era fundamental optimizar as vontades perdidas de humanos em caminhadas sem nexo.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

076 senhora da ternura

Entre todos os peregrinos existiam tentações diferentes, não se buscava a perfeição, nem desejos estanques. Todos sabiam que apenas se buscava a maior das utopias, a liberdade. Acrescentar um pouco de ternura a essa demanda não era nada demais, mas a azáfama era tanta e os supostos seguidores aumentavam a um tal ritmo que por vezes se esqueciam da sua condição de meros humanos.

Sendo a mais dura de entre todos era a que protegia com mais afinco aqueles que estavam destinados ao degredo eterno da ausência de urgência. Antes da calma absoluta que levaria as almas ao suicídio moral ela dava-lhes o conforto necessário a essa transição buscando, por vezes, o terror absoluto como medida para enlouquecer as ideias feitas, expulsando-as. Claro que Arturo, mas sobretudo Flor não podiam saber desta perda de tempo, que apenas desviava as atenções do que era verdadeiramente importante.

Ela, a Senhora da Ternura, não sabia do paradeiro de preconceitos dentro da sua alma, castigos injustos, decapitações morais ou desejos impulsivos que pudessem levar à morte antes da chegada natural do destino. Não, isso eram coisas dos banais invólucros a quem chamava de inquisidores, os humanos portanto.

Ela, a temível Ternura fazia cair corações de peitos desavindos com a sua expressividade. Um abraço não podia faltar, assim como a famosa Ira que a fizera juntar-se ao grupo. Aninhada no seu refúgio desconhecido conseguia controlar o tempo quando chovia, como se escutar cada gota de água fosse identificar cada profecia necessária à harmonia das coisas, com ou sem humanos a desculpabilizar-se de tudo e de nada.

O povo andava descontente quando ela se imiscuía nos seus assuntos e sorria pelo desassossego alcançado, como se a viagem fosse a outro universo repleto de planetas com vida pronta à formatação, em nome dos nefastos interesses humanos. Parecia que as consciências despertavam para o poder infinito da Luz na sua vontade própria.

A Senhora da Ternura apenas era chamada à atenção pelos anjos, pela limpidez dos seus desejos, mas sobretudo pela incapacidade de diálogo perante a prepotência das leis. Era vista como uma concorrente nefasta dos interesses instalados.

Os demónios que governavam com aparência humana tinham um poder acrescido, com os impostos cobrados à cabeça, ameaças sobre ameaças e a única esperança dos que lutavam estava no grupo dos 72. Terna, como era conhecida, atirava-se de cabeça à salvação do que era possível, sem ter que avançar para o ódio total, a forma imbecil, porém eficaz de destruir qualquer tipo de evolução das espécies. Era assim que afastava em definitivo casa demónio que atrasasse a vitória sobre a insanidade.

Apenas o Planeta esperava até se proporcionar o Apocalipse, enquanto os humanos se assediassem e Terna sorria com doçura enquanto a guerra decorria.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

075 nocturno espírito

Eles levaram aos ombros um conhecimento que modificaria todo o saber adquirido.

Sentava-se naquela cadeira como se fosse o primeiro dia, com os fantasmas recentes de um fracasso submerso por uma débil porção de humildade, apenas para destruir os mitos das pauladas no coração.

El, um anjo caído na tentação do poder por duas vezes, vagueava solitário pelo mundo, mesmo quando passava pela sua casa e pela cadeira onde se sentava, envelhecida como a vontade de progressão.

Tornava-se difícil conjugar um passado de mágoas com uma diferença quase olímpica que quase o fazia desistir como se as fraquezas da carne fossem para ali chamadas. Era preciso não esquecer o porquê da deserção e o facto de se encontrar num limbo em busca da saída perfeita rumo à fusão com aquele bando de exilados que se auto-proclamavam de terceira via. Seduzia-lhe essa alternativa apenas e só pelo poder, a sua única meta enquanto entidade sobrenatural, algo perfeitamente banal entre os seus pares.

No passado recente em que os peregrinos liquidaram um dos mais perigosos demónios, do qual se acercaram no preciso segundo em que tudo mudou, a luz do paraíso tentou instalar-se, sem sucesso é claro, nas entranhas de seres que não queriam esse tipo de iluminação.

Como sempre e aproveitando a sabedoria assimilada com a experiência terrena do dito demónio, foi dado mais um passo em direcção à via normal, preconizada nos enigmas dourados que Arturo guardava dentro de si, num compartimento à prova de qualquer tortura. Deus e Lúcifer assim o quiseram, apesar do secreto arrependimento.

El entrava então numa casa onde estavam dispostas setenta e duas cadeiras, divididas por seis mesas, como se fosse a repetição da última ceia em seis dantescos cenários diferentes. Conseguiu visualizar a última vez que tinha estado ali gente e na sua nocturna visão da vida entrou dentro de cada projecção de forma a poder sentir cada pedaço de emoção presente dentro dos corpos imaginados.

A sensação de transporte para essa dimensão onde eles estavam tornou-se uma experiência limite, consumindo toda e qualquer energia positiva que tinha previsto receber.

Ainda antes de chegar à última mesa deu-se uma violenta explosão. Tomou consciência da sua aparência humana e a custo juntou os cacos de uma existência quase imemorial. Ao cair uma lágrima no chão foi transportado para uma realidade alternativa.

terça-feira, 7 de junho de 2011

074 no fim dos dias

Os dias sucederam-se com o avolumar dos sinais que prediziam o fim do mundo tal como era conhecido.

Por onde andava Deus enquanto Lúcifer se soltava das amarras das profundezas do Inferno? E o que teria ele reservado para os Peregrinos da Sagrada Loucura, aos quais dera força incomum?

De uma coisa estava Arturo certo, enquanto conseguisse escapar à Ira do Céu e à Inveja do Inferno, podia continuar a abastecer-se da energia necessária para, pelo menos, incomodá-los.

O caminho era completamente diferente daquele a que grande parte dos humanos estava conformado pelas contínuas lavagens ao cérebro que tornavam verdade aquilo que para quase todos os entendidos não era mais do que uma farsa bem elaborada. Lutando contra o bem e o mal não poderia encontrar melhor terreno que um interlocutor silencioso para fazer passar os seus desvarios, quase sempre poéticos, quase nunca eivados de amor, quase sempre conotados com dicotomias profundas.

O desgosto de Arturo era não conseguir viver numa cruzada para a qual tinha sido arrastado à força.

Apesar do esforço tremendo levado a cabo pelos 72 peregrinos para fazerem passar a doutrina da Sagrada Loucura, havia algo que amotinava o cérebro de Arturo e provocava um histerismo intenso em Flor. A questão não se punha em Deus ou Lúcifer, os verdadeiros traidores da raça humana eram ainda mais antigos que o Universo. Como é que se tinha entranhado esse conhecimento era algo que ambos estavam a descobrir, por uma via assustadoramente dolorosa, a da separação. Ainda assim a fé inabalável que os movia agigantava-se, mesmo com a ameaça do fim dos dias.

Um desejo insaciável de aniquilar essas aberrações humanas baseadas em mitos com que apenas alguns lucravam, dominava a verdadeira essência de uma luta que parecia perdida, alegrando os anjos celestiais e os demónios mais poderosos. Mas mesmo estes entendiam que para lá da criação humana, havia a sua própria criação, guardada em absoluto segredo até à espontânea constituição da irmandade peregrina da Sagrada Loucura, patrocinada, afinal, por entidades corrompidas por séculos de poder e destruição.

Arturo por outro lado, apesar da sua aparência humana entendia que devia aprofundar esse conhecimento das verdadeiras entidades reguladoras do equilíbrio universal. Essa tomada de consciência fez o tempo parar um segundo, o que permitiu a passagem de todos os peregrinos para um passado recente.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

073 reacende-se a dor

Arturo seguia os caminhos tortuosos da redenção fossem eles onde tivessem que ir dar. Valia-se da sua crescente intuição para escolher o próximo passo a dar. Numa dessas batalhas épicas deu por si a entrar num Hospital, a ser enfiado num colete de forças e a ser fechado dentro de uma masmorra na ala psiquiátrica do mesmo. Nada era um acaso, por isso mesmo aconchegou o coração para prováveis consequências na realidade.

Tudo corria mal, nem sequer o deixavam gritar. Ainda assim, foi num desses momentos de rara tranquilidade que algo começou a mudar. Podia voar, pois então aproveitava esse dom. Mas logo da primeira vez algo se juntou a ele no ar. Parou, mesmo ali, no meio do ar, e severamente fê-lo aterrar, com violência.

Acordou preso a um colete-de-forças, de pé e com as costas coladas à parede. Ao seu lado uma mulher nua suspirava, excitada. Fechou de novo os olhos, quando os abriu uma substância viscosa caíra-lhe em cima da cabeça. Olhou para o lado e gritou. A mulher nua havia desaparecido e o suspiro transformou-se numa batida electrónica utilizada até à exaustão por Florian, um alemão para sempre inovador.

Sentiu a cara aquecer repentinamente e a dor, a princípio física, entrou-lhe pela alma dentro impedindo-o de fechar os olhos. Sucediam-se as mudanças de temas e locais. Parecia que todos os sonhos e pesadelos se materializavam.

Passou-lhe pela vista um suposto ser, de negro. Um vulto enorme que estava à entrada da sala onde tinha ido parar. Sentia absoluto desconforto por aquela presença súbita e ainda mais petrificado ficou quando este dirigiu a sua mão para o lado contrário de Arturo. Parecia-lhe estar na companhia de um Malach.

A luz foi-se instalando na divisão de uma casa que não fazia a minima ideia como era. Apenas sentiu que algo poderoso estava para acontecer.

O tempo parou. Agora tinha a certeza que era um Malach. Esse momento, que mais parecia a eternidade, deu-lhe todo o tempo necessário para se libertar, evitando uma catana que se havia suspendido a meros centímetros do seu pescoço. Tal como apareceu, o Malach evaporou-se e Arturo pegou nessa mesma arma letal cortando a cabeça ao ser de negro.

Ao longe avistou-se um tremendo relâmpago, cujo trovão ribombou nas delicadas estruturas do tempo, fazendo-o seguir o seu curso normal. A esta altura já Arturo estava a salvo de uma conspiração montada por Lúcifer que, num natural momento de puro ódio, lançou uma tempestade sem precedentes sobre o rio Nilo expulsando os pobres crocodilos do seu massacrado leito para um parque de atracções onde muita gente se recreava.

domingo, 5 de junho de 2011

072 tudo são sombras

Por vezes os sonhos eram reais, o corpo abandonava-se aos caprichos da alma e a realidade desejada emergia de uma sombra que mais parecia um buraco negro. Encontrava um antigo amor do qual se afastara em definitivo, tentando reatar a vida normal que não podia ter quando estava acordado.

Como se fossem as trevas, ficava especado à espera dos demónios que o levassem para o outro lado da fronteira, mas ao mesmo tempo encontrava um luz branca, intensa, que compensava o lado maléfico da existência. Ainda assim não conseguia admitir que a vida fosse algo mais que sombras a vaguearem, quase sempre soltas do corpo a que pertenciam, antes tormentas assassinas que desempenhavam esse papel quando menos se esperava.

Ao despertar acompanhava-o a solidão própria do fim dos dias embora Flor e os outros discípulos estivessem mentalmente ligados. Sentia-se na posse plena dos seus poderes quando os pés deixavam de ter contacto como chão que sempre pisava.

As inúmeras missões deveriam ser concretizadas de dia e Arturo ia atacar de forma incisiva um dos piores cancros da podre humanidade. A exploração infantil em todos os seus sentidos e desculpas esfarrapadas. Deixara de fazer sentido que um criminoso que destruía a inocência infantil pudesse recuperar a sua vida e passar-se para o lado dos justos. Aqui não havia lugar a fraquezas apenas lutar contra a justiça instituída destruindo essa tradição consubstanciada por seres que se aproveitavam da sua riqueza material para satisfazer qualquer tipo de desejo, por mais perverso que fosse.

Começou por entrar dentro da cabeça de alguns pedófilos. Tomou conta da sua vontade própria e levou-os directamente às famílias das vitimas. Se fosse necessária a tortura ou a morte isso não seria um problema, antes uma forma de purificação do mundo letalmente intoxicado. Em certos casos vendo a total ineficácia da justiça levou-os à auto-castração, em público, sangrando até à morte. 

Nem o bem, nem o mal ficariam associados à imagem da sua organização, antes a tentativa de sabotar a missão que de louca apenas tinha o nome.

Provocou um banho de sangue indescritível. Algumas zonas entraram em colapso com a colocação em prática da protecção dos direitos humanos dos menores. Também era absurdo pensar que muita roupa usada pelos europeus fosse confeccionada por petizes sem infância. O fim desse tipo de exploração levou a uma vingança brutal contra as almas perdidas em corpos sujos na que se tornou uma missão extremamente dolorosa para qualquer um dos peregrinos.

071 os lábios trémulos

Noite após noite Cecília regressava ao mesmo sonho, que começava no carro, onde viajava com o marido e o filho. Iam sempre a caminho da Adraga, num amontoado de curvas e contra-curvas, cada vez mais estreitas. A certa altura apercebia-se que a praia já ficara para trás e que estava na parte de trás do carro, estando o seu filho no lugar do morto. Com estranheza ainda maior voltava a ver a estrada. Olhasse para onde olhasse apenas se descortinava um nevoeiro denso, possivelmente escondendo um precipício sem fim. A viagem terminava, invariavelmente, com o carro a ser engolido por uma onda gigante, seguindo para as profundezas do Atlântico. Sempre a descer, ao mesmo tempo que uma profunda sensação de medo a dominava. 

Acordava quase sempre em sobressalto, mas tinha num desejo intenso de descobrir o final do sonho, talvez para saber até onde o seu coração aguentaria. Tudo servia para acrescentar novos pontos de interesse a uma história que não podia ser apenas produto do seu cérebro, porque afectava os seus movimentos diários mais banais.

Noutro sonho Cecília estava internada na ala psiquiátrica do Hospital Surreal de Dali. Os gritos e a loucura, envoltos num manto negro de desejo, enfraqueciam-lhe cada vez mais o corpo, enquanto a alma vagueava nas trevas. O corpo apenas viveria ate encontrar a solução final encontrada na fusão de sonhos sem sentido aparente.

Noutro sonho ainda, já de olhos abertos, Cecília imaginava-se possuída pelo espírito de um homem que teria sido a sua alma gémea nas diversas encarnações anteriores. no entanto, a cadeia de acontecimentos era, invariavalmente, interrompida com a condenação dos dois seres ao degredo eterno. E no último segundo a mensagem continha sempre os sinais da aproximação do Apocalipse.

Mais estranho tudo se tornava quando se deu uma inexplicável onda de suícidios em que cada bilhete de despedida mencionava sempre um anjo negro, ainda preso num corpo, que obrigava os suícidas a se auto-mutilarem até ele não ter onde se prender, morrendo em sofrimento atroz, sempre em crescendo até o coração explodir.

Todos viajaram num mesmo avião cujo destino era o Rio de Janeiro e decerto que o acaso estava posto de parte por razões de conveniência.

Um homem, de nome Thomas, ardia espontâneamente enquanto cantava acerca de sonhos eléctricos, até as cordas vocais arderem e a vida se acabar. Passados segundos, qual Fénix, regressava à forma anterior, voltando uma e outra vez aos sonhos eléctricos e ao estado de carbonizado.

Cecília tinha os lábios trémulos da dor que a castigava, ainda assim conseguia arranjar tempo para viver, consumir substâncias ilegais e um beijo que sempre a fazia rejuvenescer.