domingo, 19 de junho de 2011

082 tardam as chuvas

Voltou a fechar os olhos. Quando os reabriu a rotina de mero humano tinha-se reinstalado, a força da gravidade mantinha-o preso ao chão e sentia a falta de Flor à distância de poucas horas de avião.

O frio apertava e o sono voltou a sobrecarregar as pálpebras. Todos os dias úteis apanhava os mesmos transportes, estabelecia fecundas relações de indiferença com os mesmos passageiros de destino aos quais respondia com exuberante silêncio. Claro que nessa vida sem aventura tinha um trabalho, crises profundas de desdém pelo esforço inglório a que se dedicava, apenas e só porque a doce Flor estava lá ao longe, apesar das poucas horas de distância que os separavam.

O frio apertava, os sorrisos custavam mais a sair, o corpo já nem se contorcia de dor pelo vento gelado, apenas seguia caminho, rumo a algo indistinto, talvez às chuvas que tardavam em chegar. Apenas ia, na esperança de que ao fechar de novo os olhos, os pudesse reabrir numa nova dimensão, com mais luz e fantasia, excitação e megalomania, amor e paixão, amizade e tesão, algo que tardava em chegar, tal como as chuvas.

É possivel que a melhor solução fosse o internamento num Hospital Psiquiátrico, já que ninguém acreditaria que um simples empregado de escritório fosse mudar as mais básicas crenças de qualquer ser humano. O bem e o mal estavam de tal forma enraízados na história da humanidade que sería obra de louco apregoar uma terceira via. Afinal como se chamaria essa entidade? Qual seria o seu raio de acção? Seria possível celebrar uma missa com rituais próprios a essa crença? 

No final apenas a certeza de que a morte vence tudo. Que os sorrisos e as esperanças, as vontades e energias positivas apenas eram fruto de uma programação caótica de uma entidade que, com todo o poder nas mãos, humanamente se deslumbrou até provocar o Apocalipse e recomeçar tudo de novo, num ciclo vicioso.

Enquanto isso Flor deixava o desemprego e as suas 4 filhas soltavam girassóis de dentro da alma apontando o real caminho do Sol. É possível que elas desviassem o pedaço de Terra em que habitavam do normal caminho a seguir. As pessoas passavam a ter um pouco menos de indiferença e alguns valores que haviam deixado de fazer sentido brotavam de novo de dentro de outras almas, ainda incorruptíveis.

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