segunda-feira, 4 de julho de 2011

086 vastos aromas

Só pela imaginação contar os aromas embutidos em almas desavindas com a própria essência era um exercício cansativo.

Agora que que a consciência da falta da vida normal é a realidade possível para uma vida em que as perguntas que lhe são feitas são deixadas no ar até ao dia da loucura total, Arturo busca uma forma de distinguir as várias opções que se lhe deparam quando abre e fecha os olhos. As experiências são tão intensas e cravam-se de tal maneira na carne que cada aroma que deixam é uma forma de abraçar o desconhecido sem ter medo do que lá se vai encontrar. É possível que já tenha vivenciado alguma dessas experiências de vastos aromas entranhados numa pele ainda por curtir pelas naturais agruras do tempo.

O contacto com as pessoas reduz-se ao essencial, o castigo para a sua crónica falta de tempo é estar-se nas tintas para querer saber das suas banalidades, porque ao vê-lo utilizarão os mesmos clichés de sempre, saciarão uma necessidade momentânea de o ver e pronto, mais uns meses ou anos e lembrar-se-ão outra vez dele. Como censurar isso? Uma sociedade de ritmos desenfreados, puro egoísmo e dedicação aos que estão mais perto não era nada que ele também não fizesse antes. Agora distanciou-se e a purga necessária do sangue apodrecido de parte da família dos pais está em curso, a dos amigos que só não servem para ajudar, ainda mais e ainda assim consegue pensar que no meio de tantos pesadelos há lugar para uma espécie de paraíso em que convivem unidos os que realmente fazem falta. Por vezes apenas faz falta a própria companhia. Arturo agradece a algo a felicidade que tem em poder pensar pela própria cabeça, ainda assim não descarta a hipótese de usar a corda com que prende a roupa estendida para outros fins menos agradáveis. É notório que lhe faz falta a genuína força de Flor para desbravar essa melancolia, esse canteiro de flores que pouco ou nada têm em comum.

É preciso olhar com atenção para dentro do seu coração, devidamente protegido por uma couraça envenenada, partir em busca de moinhos inventados ou apenas um suave odor que convide ao sexo desenfreado.

domingo, 3 de julho de 2011

085 incalculável frescura

Quando se toma consciência das vontades, do caminho que se percorre e da necessidade de acreditar que para além dos fatalismos que nos impingem, torna-se mais fácil aceitar uma derrota, apenas e só porque faz parte do processo e não é o processo em si. E se for também não há problema, sempre se pode atravessar o oceano montado num habitante de Sírius, um golfinho, para os menos versados nestas coisas.

As marés e as desgraças far-se-ão sentir, mas a força de vontade suplanta todos os deuses e diabos que apenas nos tolhem o espírito.

É imperioso tomar essa consciência quanto antes ou o egoísmo latente na cabeça de cada um estender-se-á aos corpos vazios de sentido, tornando o penoso arrastar da indiferença pelo que se passa à sua volta, um mero caminho que não se pode evitar.

Passou-se muito tempo desde que Arturo começou a ter as triviais dores de cabeça e que Flor mudava o mundo apenas com o seu sorriso contagiante. Como em todos os processos de mudança, há dores que nascem, são reinventadas enquanto vivem, apagadas mesmo antes de morrerem, as da alma claro está. É curioso que a lembrança das energias positivas que prolongam o bem-estar tendem mais facilmente a ser esquecidas.

Ambos cresceram mesmo que as aparências se mantenham. Ambos subiram aos Céus e passaram as necessárias eternidades no Inferno. No final empenharam-se na indiferença da guerra entre o bem e o mal e foram acusados de loucos, lançados para um hospício onde se pretendia que morresse a memória que se pudesse ter deles.

A vida nem sempre é como nos querem impingir, nem para o melhor, nem para o pior e as centelhas de vida dos que se foram cruzando com eles, injectaram uma frescura intensa na metódica batida do coração de cada um. Os olhos passaram a brilhar, mesmo que por vezes fossem implacáveis com os males da sociedade.

Em nome da obliteração dessa incalculável frescura foi-lhes montada uma cilada, por Deus e por Lúcifer. A Luz e as Trevas fez parar o tempo, com a singular excepção do sítio onde os átomos de Arturo e Flor se juntavam formando os seus celestiais corpos.

084 Claro é o pensamento

Deixe o passado no seu canto, urna aberta para revisitar velhas glórias, mas alimento-me do presente que a minha tem sido, um verdadeiro corropio de ausências, prepotências e poucas intenções verdadeiramente genuínas de ajuda alheia.

Disse ao vento que me safava sem o erário de ninguém e parece que a malta levou isso a sério. Não me magoa senti-lo, até constato que vivo melhor das minhas capacidades que me estimulam, que a viver, quer a desintegrar-me, do que viveria se estivesse sob o jugo de alguém, anjo ou tirano.

Tenho costume de mudar de mundo enquanto os olhos se fecham e depois de abrem, não é que o peça, mas apareceu-me este dom enquanto dormia, na minha cama grande, sozinho, apesar da doce Flor, que de há uns tempos para cá acompanha de forma activa as minhas ditosas desventuras.

Nem pensem que tenho alguma carta para dar novas ao mundo. Não, apenas vivo no meio das bruxas que protegem e me aconselham nos precipícios que vão dar ao primeiro fosso do Inferno. Às vezes chego mesmo a cair, apesar de ver sempre as mesmas coisas e de sentir uma estranha cumplicidade com as pessoas que ocupam os espaços perto dessas coisas. Mas sigo, talvez sem saber que se quisesse podia voar. Mas detenho-me no caminhar, nas ânsias e nas saudades de Flor e das suas quatro filhas. Afinal o único conselho que recebo das bruxas é para me manter na corda bamba e afastar-me desse amor, algo que nunca se instalará. Que vão para a puta que as pariu! Tudo menos a solidão.

Pensar que um dia sonhava ser possível aceder a uma vida normal sem arriscar tudo num possível buraco negro e, no entanto, aqui estou, à beira de uma loucura saudável que me levará ao mundo encantado das dificuldades ultrapassadas com um sorriso, mesmo que depois voltem furiosas e vingativas.

O mundo desencantado da segurança até podia segurá-lo e cantar vitórias aos filhos da puta que me perseguem na mediocridade, porém prefiro acreditar que aqueles sonhos de itnensa realidade podem mesmo ser o ínicio de qualquer coisa profunda.

Entretanto o frio voltou, os alarmes da ourivesaria, ao fundo da rua, tocaram. Apetece-me beber um whisky e um café sem açúcar. Para completar este momento de felicidade basta um abraço de Flor quando estiver a entrar em casa.