segunda-feira, 19 de julho de 2010

030 surpreendentes ofícios

Arturo é o seu nome, homem de surpreendentes ofícios. Largou uma vida economicamente viável por um destino mais próximo da felicidade, mesmo que isso implicasse  contar todos os centavos e a possibilidade de ter de roubar para sustentar a sua família.

Claro que as cortinas vermelhas, a certa altura da sua vida lhe deram uma visão clara do significado dos sonhos que de certa maneira, algo negra, quase o atiraram para uma pira funerária, por via do suicídio.

Porém, apesar de não perder dinheiro nos jogos de azar e ainda assim ter o cartão de crédito usado no limite, foi-lhe fácil juntar o dinheiro que precisava para a viagem da sua vida, sempre com o pensamento posto na mulher que lhe daria o prazer de ter uma vida normal, até que a morte os separasse. Como disso nunca teve dúvidas, foi com naturalidade que lhe apareceu na vida a Flor, mulher de muitas qualidades, mal casada, com uma erva daninha que lhe ia obliterando a vontade de ser feliz, afogando as suas mágoas em cerveja barata e nas noitadas de jogos de cartas com as amigas, enquanto as quatro filhas iam crescendo de forma acelerada, enchendo-lhe a paciência, finita.

Curiosamente conheceram-se no bar para onde ele foi trabalhar, ela ia com outra rapariga e nada os faria prever o vendaval de emoções que esse dia inócuo veio a revelar. Ela bebeu um café, enquanto ele tentava saber de um quarto para se hospedar. Ainda nesse dia foi-lhe apresentada uma rapariga de nome Elena que nunca chegou muito a saber o que fazia ou de onde vinha, apenas se aproveitava dele com histórias mirabolantes a que ele teve de colocar um ponto final para não correr o risco de ser preso.

A pouco mais de quinhentos metros vivia Flor e as suas quatro rosas de um canteiro que precisava ser melhor estimado. Por um acaso do destino e apesar das noites mal dormidas Arturo tinha sempre a companhia de Flor pela manhã, fosse no autocarro ou a pé.

O tempo era instável, assim como Arturo aguardava pacientemente por aquilo que sabia ir acontecer, embora não soubesse com quem. Flor descobriu nele o marido perdido em noites consecutivas de bebedeira, até que se foi de vez trabalhar para outra cidade. Flor aproximou-se de Arturo como que espantando fantasmas de uma vida mal resolvida.

No meio do Verão quente, Arturo mudou para uma nova casa e por detrás das cortinas vermelhas amou Flor como nunca havia amado ninguém!

029 gerações de poetas obscuros

Aquele sonho de um dia publicar fora finalmente concretizado. Claro que todos vaticinavam desgraça, à partida porque não era conhecido, urgia trabalhar a coisa, só esse trabalho e tirar as pessoas do seu comodismo crónico tirava as hipóteses de venda imediata massiva.

Ficava por plantar a árvore e fazer nascer um filho. E assim regressava ao presente, em que a descrença continuava a ser um ponto assente na sua vida, ou talvez fosse apenas um problema da sua cabeça, pensar que ninguém queria saber dele, era apenas o medo de cair na mais absoluta solidão. Sim, aquela solidão cheia de gente, palavras vãs e sentidos ainda mais ocos. Quando se juntava o Verão à questão e o suor abundava deixando os odores que o enojavam a cirandar por cada canto onde se encostava, era tempo de acreditar que pertencia mesmo a uma geração de poetas obscuros, que se juntava na glória efémera de uma qualquer antologia que ficava para a memória num vídeo colocado no youtube e ainda mais na conta bancária do comerciante coordenador da mesma. Nem se tratava de vergonha o facto de ter deixado de divulgar algo que apenas devia de ser separado da sua pessoa. E quando lhe contavam aquelas histórias de fulanas que se apaixonavam por assassinos famosos, abrindo toda a sua intimidade ao desafio da imaginária possibilidade de passar a ser a vitima final de algum ser abominável aos olhos da sociedade, que estimula, protege e os negligencia. Claro que fazer parte de tal clube só se tornava possível pelo desleixo a que fora votado esse dom, tardiamente estimulado, desprezado e depois colocado num limbo aparentemente sem saída, apenas porque buscava pela vida normal de um humano anónimo.

Ainda assim o desejo habitava-o como se entre cada batida do coração estivesse a graça de um Deus que até lhe dava jeito que existisse, apenas para pôr ordem no caos interno que era a relação consigo próprio e que distorcia a realidade circundante.

Esses eram dias de profunda amargura, em que nem o desejo carnal ou uma moca bem induzida faziam esquecer, esse desejo premente de fazer parar o sangue que corria nas veias. Pelo menos assumira perante os seus desejos mais íntimos aquilo que queria, apenas era necessário manter um segredo, o que a não acontecer provocaria a sua queda pela eternidade se voltasse a renascer igual ao que era nesta infindável encarnação.

Ela decerto que o entenderia melhor se falassem a mesma língua, mas a maldita tristeza era sempre algo de muito superior a qualquer norma de felicidade imposta ao estilo de vida de cada um.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

028 lugares proibidos da miséria

O namoro começou bem. Cedo deu lugar aos sorrisos e ao sexo desenfreado que o seu corpo já esquecera. O tempo, recomporia tudo, sobretudo o desejo de amar e ser amado.

Foi atrás das cortinas vermelhas que se deram algumas das primeiras manifestações de amor mútuo, apesar da natural indefinição e do teatro provocado por um paneleiro assumido que tentava torná-lo num pérfido matador de lares compostos de costumes, não de amor. Mas ele mostrou bem o seu verdadeiro carácter, mesmo mentindo, alcançando a necessária indiferença de outra corja de frustrados que tinham como desporto favorito as bebedeiras diárias e o espancamento das suas mulheres, por amor, como se a miséria provocada por esses actos cobardes fosse afinal um acto necessário e normal. 

Apesar da submissão aparente dela, cada dia novo foi a constatação de que aquele pedaço de paraíso onde se amavam estava vedado aos fantasmas residentes em almas para quem amar fazia parte de ser proprietário e não de partilhar.

A força do amor foi-se manifestando naturalmente e o sonho sempre adiado de ter um filho tomara outra forma com a presença daquela super mãe, repleta de tantas fraquezas que a tornavam ainda mais bela de coração. Decerto que nesses lugares proibidos da miséria não se esgotaria um amor sempre em fase crescente, muito menos se esvairia o desejo e a força de vontade de lá sair rumo ao conforto e bem-estar que ele gostava de se proporcionar e a todos os que o rodeavam.

A mulher da sua vida houvera passado tempos de difícil digestão, com as suas memórias tristes que, ainda assim, não lhe impediam o sorriso ao entrar em casa dele. Um verdadeiro bálsamo depois de chegar  cansado de um trabalho para o qual se sentia envelhecido antes do tempo. E, pela mesma razão que sentia a chama de um amor que o atormentara sem sequer o habitar, tornava-se imperioso deixar de perder tempo com problemas que não eram mais os seus.

O mundo estava cada vez mais apodrecido, mas ainda se estava a tempo de colocar em prática o egoísmo necessário para praticar a ansiada vida normal.

No alto de uma montanha onde se escondera de uma vida simples e que tanto desejava, via apenas um silêncio que agora sabia ser de ouro.

027 contos que nunca escreverias

Certo dia foi confrontado com algumas folhas dispersas que versavam acerca de um período conturbado em que mantinha uma relação intima com o conteúdo das garrafas de whisky, quase sempre terminadas por aguadas dores de cabeça e maremotos estomacais dos quais guardava poucas memórias. O rubor nas faces não indiciava vergonha, apenas uma súbita raiva pelo vil manuseamento daquelas folhas preciosas onde haviam penetrado com intenso ardor os seus pensamentos. Preferia sentir a casa vazia de críticas a ser confundido com uma realidade baseada em oníricas sensações vividas por um personagem que não lhe dera para desenvolver adequadamente. Pouco depois desse confronto subia-lhe mais sangue à cabeça e uma profunda raiva, consubstanciada com um demoníaco desprezo que o punha a gritar até sentir os pulmões a pedirem asilo do próprio corpo. 

Eram momentos em que a ideia de morte se sobrepunha às mesquinhas vontades de quem se dedicava a maldizer algo de que se afastara de livre vontade. Pegava então numa caneta e escrevia desalmadamente até a mão lhe doer, como se fosse um acto masturbatório que o aliviava temporariamente. Depois copiava para o papel as dores saídas de lágrimas abandonadas a um vento raro que parecia ter vontade própria e ambições de destruição da harmonia. Encostava-se ao sofá tecnologicamente avançado e delirava com a promiscuidade mantida com as letras que se amontoavam em cadernos negros, de magia, sem segredos. Fechando os olhos poderia imaginar os cenários pretendidos e encostar a imaginação ao infinito, colhendo a paz ansiada directamente na sanita, colhendo amargas revelações que apenas tinham o condão de precisar que a sua imaginação se regia por comprimidos que lhe alteravam a percepção, deixando a nu os monstros escondidos nos pesadelos, cada vez mais frequentes. Era comum que depois de algumas centenas de palavras as pálpebras pesassem e as vértebras cervicais se queixassem admitindo a possibilidade de ser mais um no bloco operatório daquele hospital em que juntavam operados à coluna e à cabeça, com a respectiva loucura adjacente para os que necessitavam de repouso absoluto. Era mais provável levantar-se de novo da cama e ver uma daquelas histórias improváveis da televisão.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

026 longínquas vidas

O passado era uma espécie de castigo que o impedia de abraçar qualquer espécie de relacionamento. Foi assim durante grande parte da vida em que devia ter-se dedicado a mais bebedeiras e momentos sóbrios com maior qualidade. Certo era que em cada momento que se afigurava como presente dava graças por poder compartilhar a vida com uma mulher a quem não prestara a devida atenção no inicio de uma relação cada vez mais sem fim à vista. 

Quando se afastava desse presente era como que o fantasma de longínquas vidas, que lhe haviam moldado a alma para esta encarnação, voltassem sobre a forma de um pesadelo em que um homem sem cara se deixava cair tranquilamente sobre um manto de pregos ardentes que lhe arrancavam a pele sem o fazer desfalecer. Claro que acordava suado e com vontade de fugir da cama vazia, dos tormentos por que passava até o despertador tocar.

O que o preocupava mais nem era ficar desempregado, apenas não poder aplicar num herdeiro do seu sangue alguma da sua vontade de viver num mundo menos negro, como se assim fosse mais fácil aceitar a rotina imposta pelo coração.

Porém as sementes plantadas estavam dinamitadas e as ervas daninhas cresceriam sempre mais que a natural composição de flores que apenas seriam uma modesta falsificação de um projecto de vida a que faltaria sempre o elemento surpresa, propositadamente esquecido com a desculpa de resolver problemas que ficariam sempre para além de uma vida incompleta. E seria delicioso saber o composto de uma vida completa, como se o auge da contemplação humana lograsse ultrapassar a sua maior invenção: o divino.

Apetecia beber um cocktail, daqueles bem misturados por mãos experientes, que depois escorregaria garganta abaixo da mesma forma que algumas mulheres iluminadas têm os seus orgasmos. Sorria diante desses feitos de despudor total, e ainda perante a máquina infernal dos distribuidores de almas pelos diversos cantos aos quais pertenceriam, por decreto ou mistificação consubstanciada, as moedas frequentemente abandonadas na caixinha dos pobres da paróquia mais pequena do mundo cuja localização só ele conhecia.

Ao abraçar as memórias que o ligavam a um passado para além das cortinas vermelhas, que o separavam do presente, sentia as vidas em si a palpitarem de desejo por algo diferente e desconhecido.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

025 as cidades crescem

No meio de tantos gemidos, orgasmos e intensa vontade de copular, ele ia vivendo a sua vida. Decerto que o presidente da junta de freguesia aprovava o desejado acto, sobretudo se dele resultasse mais um natural da terra. A bonificação era assaz apetitosa e não era difícil imaginar as orgias secretas entre alguns dos pares mais bonitos, sem preocupações de cornos ou posterior cor da cara do filho. 

Tendo-lhe chegado aos ouvidos este plano de crescimento e ciente da sua capacidade reprodutora diante de algumas fêmeas insaciáveis, nem se preocupou com a possibilidade de ser pai solteiro, incógnito ou posteriormente acusado pelo famoso teste de ADN. Podia dar-se o caso de um filho ter um pai maricas apenas porque a mãe passara a ter asco aos homens e assim podiam educá-lo sem ter de empinocar. Umas vezes a ideia agradava-lhe, mas quase sempre se deprimia perante o espectro de ter um herdeiro que nem sequer era reconhecido como seu, apesar de o ter parido primeiro e um dos seus milhares de espermatozóides ter vencido sozinho a batalha de entrar dentro do óvulo.

Porém, depois de fantasiar tudo o que se lembrava, , voltava sereno à realidade, abraçando a namorada por quem sentia algo bem mais profundo que uma mera paixoneta ovular. Tudo isso somado à responsabilidade pelas filhas e o prazer que a ele lhe dava ter uma mulher assim, fazia o desejo de traição ser um mero devaneio.

Era possível que tantas casas vazias viessem a ser ocupadas depois de posta em prática a mais radical medida anti-crise. Decerto que os bebés voltariam a chorar apenas por nascerem e que os parques infantis voltariam a a ser motivo de agendamento de brincadeira com o afluxo desmesurado de petizes. Ao menos que esse crescimento servisse para renovar o sangue estagnado que atrofiava os pensamentos de adultos mal-amados.

Fosse ou não por decreto ele tinha esse desejo intenso da paternidade, atingindo assim o patamar mais alto da sua vida (inclassificável): uma vida normal.

Ainda assim seguia coberto por um manto negro de dúvidas pelas ruas envelhecidas de uma cidade mal cuidada. Houvessem essas crianças anunciadas no decreto e com uma manifestação por elas criada a vida se agigantasse, que a pequenez provocada pela falta de motivos racionais para sorrir, chorar ou simplesmente berrar era algo a que todos pareciam condenados.

Ao sentir as cidades crescerem os adultos deviam infantilizar os seus propósitos, prometer nunca mais crescer a sua perfídia e assim deixar o mundo livre dos caos climático, alarve vermelho e desejo de morrer a dormir. Não, essa pressão de crescimento nunca fora benéfica e assim ele não conseguiria ver o mundo com as cores que ele tem, o verdadeiro mal eram as pessoas refugiadas no negro absoluto da cegueira, o cérebro recusava-se a pensar e a aceitar novas propostas de mudança.