sábado, 18 de setembro de 2010

041 peregrinos da sagrada loucura

Em nome da sagrada loucura saíram todos os crentes num mundo livre de conceitos a uma rua obscura porventura cheia dos demónios que urgia defrontar. Assim nasceu um movimento espontâneo em que se tornou o líder espiritual, assim designado pelo grande mestre do eterno desassossego, livre das grilhetas da imbecilidade reinante desde tempos imemoriais.

Depressa se fez sentir a repressão contra o crescente clima de optimismo, lucros exageradamente altos de gente anti-sistema, reprodução de uma nova bíblia devidamente financiada por esses mesmos novos ricos, em delirante crescimento.

Sem se saber bem porquê, apenas com a paranóia instalada, referendou-se o sim à pena de morte em praça pública com posterior transmissão televisiva em horário nobre.

Ao mesmo tempo que espalhavam a loucura da vontade própria iam desacreditando, um por um, todos os opositores às aspirações de uma vida normal, sem o fardo pesado do trabalho por conta de outrem e da sua função financiadora do lazer pecaminoso da ladroagem directiva. As baixas tornavam-se evidentes nos dois lados e apenas proporcionou o aparecimento de líderes ainda mais esquizofrénicos que os do costume, o que não era, de todo, o objectivo pretendido.

E ele seguia tranquilo na sua nova missão de desconhecido líder de uma nova ordem universal que tinha firmes opositores vindos das profundezas do Inferno para atormentar as almas opositoras dos desígnios previsíveis de Lúcifer.

Tranquilidade, assim vinda do nada era o melhor e mais eficaz antídoto para as calamidades que se multiplicavam a um ritmo cada vez mais alucinado.

Vivia então na fronteira da insanidade mental, rodeado de seres abjectos, cegados pela ira que lhes era injectada directamente na alma e expirada em corpos degradantes, provocando rápido contágio por cada átomo correspondente que os cercava. Era inevitável uma qualquer brecha no espaço que dividia os mundos paralelos, tanto os corpóreos como os outros que tinham os mais variados tipos de versões segundo aquilo em que alguns achavam que todos deviam acreditar.

No meio dos peregrinos da sagrada loucura, algo de estranho se passava, como se devessem prestar súbita vassalagem a algum anjo orientador. Porém era inviável o sentimento de submissão num dos abençoados loucos, que agia com distinta anormalidade dos demais.

Dizia a profecia do quinto patamar do cofre dourado que um demónio continha no sangue do seu receptáculo carnal o código que permitiria o acesso ao sexto e penúltimo patamar do objecto que alteraria para sempre o destino da humanidade. Todos o negavam, cada vez com mais veemência e a cada mentira que crescia Deniel aumentava o seu poder terreno, disfarçado de peregrino.

domingo, 12 de setembro de 2010

040 os lugares do mundo

De todos os lugares do mundo com as condições ideais para alcançar o cofre dos enigmas dourados, havia apenas um que as reunia, pelo que foi nessa cidade, classificada de património mundial, que foi travado um combate de uma violência indescritível entre as forças maléficas aliadas de El e os anjos de Le, o omnipotente benfeitor. Pesadas baixas se viriam a dar, transformando almas imortais em meros humanos. Porém um demónio escapou desse destino cruel e fugiu para a dimensão dos vivos com os seus meros vinte e um gramas de peso. 

Almiel era uma simples brisa que se misturava com os infinitos compostos químicos à solta na atmosfera. A sua composição tornava-o especial perigoso pela transformação de oxigénio em monóxido de carbono, algo trivial no planeta a todo o instante e que lhe dava a consistência necessária para se transformar num humano, moldando a seu bel-prazer a carne que lhe revestia os ossos. Em alternativa podia entrar em qualquer corpo mesmo sendo este portador de uma alma incorruptível. A única falha do processo era suportar a esquizofrenia que se instalava no receptáculo depois entrar neste durante um determinado período e que provocava níveis de destruição absurdos de tão elevados. Por isso e como havia sido convocado para a missão final teve que se deslocar para longe do esconderijo do cofre mais bem guardado pelos arqui-rivais celestiais.

Só que um demónio como Almiel jamais se renderia à evidência da espera e submissão ao seu líder todo poderoso. Mais do que qualquer outro tinha a capacidade de destruir tudo o que lhe aparecia à frente, utilizando a tortura como meio mais eficaz para se tranquilizar enquanto tinha que esperar no exílio.

A fuga rumo ao paraíso possível era algo cada vez mais incentivado pela Igreja Católica, tendo-se chegado a um consenso generalizado sobre as origens do mal e a melhor forma de a combater, só que essas conclusões ficaram escondidas da população em geral permitindo o genocídio de raças inteiras e credos em particular. Segundo os líderes de tal Igreja era possível combater o mal, de origem desconhecida, pela força de vontade em acreditar sem que isso significasse vender a alma a qualquer templo equipado com sofisticadas máquinas de lavagem cerebral, mas a forma de ajudar as populações em desespero era pela via da oração, algo perfeitamente inútil na presença de um demónio que se alimentava da degradação natural dos corpos.

Almiel tinha sabedoria suficiente para adiar a sua derrota final através do caos e o sangue voltou a jorrar em abundância, renovando os humanos sobreviventes para o dia do Juízo Final. E como corpo deixa de funcionar sem determinada quantidade de sangue era nesse momento de fraqueza que as almas eram condenadas aos fossos mais profundos do Inferno, pela eternidade.

Numa aldeia remota, com poucos habitantes, deu-se um fenómeno de inolvidável crença na fraqueza do corpo, tornando-o inapelávelmente forte. O seu único sobrevivente recebeu Almiel como hospedeiro incontrolável.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

039 dias de cólera

Sobreveio a loucura num dia de tempestade que provocou milhares de mortos e outros tantos estropiados. Os gritos de dor pareciam ser contínuos, mesmo para lá da náusea provocada pela constante aflição de nada poder contra as forças impiedosas da natureza, naturalmente desgastada e a responder com a violência adequada à intromissão efectuada pelos maquiavélicos humanos.

Fechavam-se os olhos na tentativa de mudar alguma coisa, mas ao reabri-los apenas se acentuava o terror paralisante de tanta sedução de que estava imbuído o aproximar do fim do mundo.

No meio do medo em desmesurado crescendo rodopiava um pequeno objecto não identificado. Era demasiado pequeno para poder ser participado às autoridades, quer as altas, quer as naturalmente incapazes, porém era apenas o intromissor principal na onda de destruição verificada. Precisava apenas de sentir a impotência de cada ser que o trespassava para se ir alimentando.

Ao longe alguém gritou 'fugi enquanto podeis das garras venenosas de Fraquiel, não deixais que ele se alimente das vossas fraquezas por mais justas que sejam!', mas um raio simplesmente o reduziu a um mero corpo sem vida ou qualquer tipo de energia reutilizável. Como se depreenderá a população por infectar juntou-se para combater o regresso de mais um filho mau da terra.

Só que essa união aumentava mais a fraqueza, produzida pelo medo escondido dentro de cada um. Apenas os verdadeiros destemidos não foram atirados para as profundezas de um Inferno fétido, ainda pior e mais tortuoso que a própria maldade humana. Fraquiel renascia numa época de verdadeira descrença e dava início à busca pelos outros demónios soltos com o fim de dar curso à maldição que cegaria por completo a noção de bem da população humana.

Apesar de todas estas convulsões e metódicos processos de assassínio de presumíveis culpados, o Sol brilhava com uma intensidade fora do normal, promovendo o fortalecimento de Fraquiel que culminaria com a possessão de um humano absolutamente normal e torná-lo na besta maquiavélica necessária para poder reconhecer os outros seis demónios, primeiro passo para o Apocalipse total, profusamente divulgado pelas profecias de alguns antigos, naturalmente à prova de demónios.

Durante seis dias seguidos choveu copiosamente e uma cidade inteira foi engolida pelo rio em cólera, depois de sugar todas as almas consumidas pelo medo. Sentiu-se então preparado para o grande salto. O hóspede era apenas uma atraente recepcionista de uma conhecida firma de advogados. Em breve tomaria conta do coração amedrontado do maquiavélico advogado.

domingo, 5 de setembro de 2010

038 um sítio para o esquecimento

Algo brilhava com uma intensidade superior à normal, como se se manifestassem de forma abrupta algumas das mais nefastas consequências do aquecimento global. 

Era apenas um dia de Sol, raios intensos a perfurar a atmosfera mais que o normal e alguns seres a sofrerem queimaduras quase instantâneas, motivadas por algum colapso na camada de ozono. Porém tudo era provisório, tal e qual como o mundo daqui a muitos milhões de anos será engolido pela expansão final do Sol, que porá um ponto final a toda a fantochada criada pelos humanos para dominar o planeta Terra. Claro que, como nesse presente, as mentes mais prodigiosas e sobretudo as mais endinheiradas, já estariam a anos-luz da omnipresente desgraça que a todos aflige.

Apesar de por vezes sorrir perante os cenários da desgraça, eram mais as vezes em que sentia algo maligno crescer dentro do seu ser e os comprimidos para a depressão daí advinda o perfeito bálsamo para o esquecimento de um mundo em busca de super-humanos que o salvassem com o plano certo.

Havia que encontrar o sítio certo para substituir os pesadelos recorrentes por um qualquer ente iluminado pelas energias positivas, algo que sentia com pouca intensidade. A vida não lhe sorria de feição e o mundo mostrava-se algo mais violento e propício ao colapso nas formas de vida.

Foi na deambulação pelos recantos mais sujos da sua existência que se deu conta da sua solidão, vivida numa grande metrópole apinhada de potenciais suicidas que conduziam a falta de desejo ao seu Apocalipse final.

Para ultrapassar esta amargura e impedir a formação de metástases que lhe minariam toda a auto-estima permitiu-se desligar por instantes o contacto à Terra, viajando muito para lá da fina camada de gelo que se havia criado entre si e uma suposta vida normal.

Transformou-se a história de alguém sem interesse num monstro de contornos mitológicos, pela fama adquirida e pelos anos intensos de viagens rumo a um sítio para o esquecimento, o que lhe estava vedado por via da sobre-exposição a que estava sujeito. Desta maneira era impossível arquitectar planos de fuga física, deixando o povo incrédulo a chorar pela revelação ad eternum das mesmas tentações que há muito recebiam como novidades arrepiantes.

Nesta dimensão paralela de soberba foi-lhe dado a conhecer o Rei de todos os Reis do qual, naturalmente, não se lembrava nem da cara nem da possível metamorfose necessária para ser visível por um mero humano por mais famoso que este fosse. Já era hora de abreviar caminho até à glória, mesmo que isso não passasse de mera ilusão.

sábado, 4 de setembro de 2010

037 o sangue de um povo triste

Um dia, ao despertar, deu-se conta das novas cortinas vermelhas, algo que antes apenas aparecia em sonhos. Talvez pelo avançar da madrugada, da breve chegada do amanhecer e das rotinas a que se sujeitava diariamente não lhes deu a devida importância. Dirigiu-se à janela para ver a Lua mas deparou-se com o vazio. Se seria absoluto não o sabia, apenas agarrou o peito com medo que o coração deixasse escapar as suas batidas metódicas e recuou.

No suposto prédio que deveria estar em frente, nada vislumbrava, outro homem recuava perante a ausência de tudo. Ambos soltaram lágrimas amargas de uma dor por qualificar. Porventura seriam mega-estrelas devidamente empacotadas em cromos a colocar em qualquer posterior anedotário se a dor não se intensificasse a cada segundo que passava. Cerrou os olhos e pensou na situação mais absurda possível. Em poucos segundos deveria sair um sorriso de incandescente glória que queimaria possíveis demónios, porém o que se passou foi um fenómeno de junção de partículas, aparentemente inclassificáveis , que foram tomando a forma de um ser humano. Do outro lado apenas gritos lancinantes de uma dor atroz que lhe entrava pelos ouvidos dilacerados a dentro. Só que nada fazia, estava em absoluto delírio com o que via nascer, mesmo em frente a si.

De repente tudo se desvaneceu, voltou de novo à janela e via hordas de pessoas caminhando sem destino. Alguns sangravam dos pés gastos de tanto andar. Algumas lágrimas em doses mais abundantes formavam um rosário de frustrações que aglutinava um cada vez maior número de insectos. Este estranho fenómeno foi-se multiplicando em volta do charco original e alguns transeuntes foram caindo, desamparados, numa morte de contornos dantescos. Estava assim anunciada a chegada de Xarquiel, um demónio que crescia no sal das lágrimas, duplicando os sentimentos de dor em seres que viviam da aparência de felicidade desguarnecida da intensa vontade de mudar o mundo por um qualquer ideal válido.

Dando-se conta do intenso mal-estar que aumentava na sua rua fechou a janela e refugiou-se atrás das cortinas vermelhas. Lá fora todos se viravam para aquele edifício antigo e gritaram a plenos pulmões até rebentarem as cordas vocais, um por um. Tudo se passou em menos de meia-hora tornando-se Xarquiel suficientemente forte para partir em busca dos outros demónios, levar-lhes as coordenadas exactas do ataque final e angustiar até à morte todos os incautos que encontrasse pelo caminho.

Entretanto um terramoto de grau nove na escala de Richter destruía uma capital europeia. A morte andava em festa pelas ruas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

036 este corpo em decomposição

Porém algo mais profundo se passava no cemitério de uma pequena cidade no nordeste de Espanha. O caminho era feito sempre em subida íngreme sendo os esquilos, habitantes dos pinheiros a salvo de incêndios, presença assídua na vigília dos que pudessem perturbar a natural decomposição de seres feitos para ninguém mais se lembrar deles.

Era usual ver-se caravanas de almas em sofrimento pela perda de algum corpo querido e escutar-se os esquilos de olhos bem abertos a perscrutar tudo com a máxima atenção. Chegados lá acima, do lado direito, havia uma porção relativamente grande de ervas daninhas que destoavam da paisagem geral. Mas foi durante o silêncio sepulcral da noite que se deu um fenómeno bizarro que provocou a morte de quase todos os esquilos. Para quem tivesse poderes extra-sensoriais era fácil adivinhar a presença de um qualquer demónio. Assim foi e era o tempo de Mortuivel se manifestar, renascendo por meio da fraqueza dos vivos perante almas em transição.

De início não se deu pela falta dos pequenos animais, a fonte de equilíbrio entre as almas que ainda podiam ser purificadas e as danadas pela eternidade, por natureza corrompíveis sempre que alguma situação o justificasse.

Sendo um caso único em que se dava a guarda do portal das almas em transição a pequenos animais como esquilo, tornava-se estranha a intromissão de Mortuivel, causando o caos sem que as forças opostas, devidamente avisadas, fizessem algo que impedisse o crescimento desta força destruidora invisível..

Ao primeiro raio de Sol estava preparado para receber o seu primeiro hospedeiro, sendo a alma do coveiro a eleita. Sendo um senhor de provecta idade, era casado com uma professora reformada, mas ainda influente no pequeno meio em que vivia o que lhe agradou ainda mais.

Mortuivel passou rapidamente a sua energia negra e destrutiva para a dita senhora que mantinha uma amizade intima com a sogra do presidente da câmara. A dita amiga mantinha uma escaldante relação sexual com o genro, sendo a forma perfeita de atingir os fins a que estava destinado por Lúcifer. 

A primeira medida a ser aprovada seria um projecto-lei em que ficasse estabelecida a expulsão imediata de todos os estrangeiros sem situação legalizada. Tal medida foi aprovada em tempo recorde, provocando uma onda de indignação em todo o país, passando a especular-se sobre os motivos profundamente racistas da mesma. O facto de a repressão recair sobre quinze mil muçulmanos provocou uma onda de atentados que lançou o caos na comunidade há longo tempo a reclamar a independência. O sangue jorrava de novo e em abundância, provocando divisões irreconciliáveis entre defensores de direitos humanos e nacionalistas radicais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

035 ao fim da tarde

Os dias bucólicos, em que a presença de familiares distantes se tornava como que o acontecimento do século, eram cada vez mais escassos, possivelmente fruto do mau feitio do anfitrião que arranjava sempre um pretexto para provocar desgostos na assistência, que cedo se arrependia da presença planeada com tanto afinco pelo desestabilizador.

No meio desse vendaval de desistências, notou-se uma presença tardia, porém assídua, como se entendesse que tudo devia ser redigido segundo as leis antigas da fraternidade, nem que para isso tivesse que matar, tornando-se um pária.

A viagem passava a ser feita numa carruagem estranhamente limpa, como se o mundo se resumisse a um amontoado de corredores e assentos que, devidamente utilizados, levavam o passageiro pela quinta dimensão dos prazeres carnais, seguido das profundezas do Inferno, indevidamente conquistadas pela sedução de um anjo perdido de nome Ervidel, que de tanto ser torturado se esqueceu da missão divina e se transformou num demónio.

Rezava a lenda que os seus poderes se libertariam ao fim de uma tarde, imediatamente depois do solstício de Inverno, notando-se a sua presença física junto de árvores centenárias. Foi assim que saiu o primeiro demónio da sombra, rebentando com uma mala perdida num aeroporto, que viajara por caminhos obscuros e mãos invisíveis até cair esquecida num aglomerado populacional cuja fonte de rendimentos maior era um abeto de doze metros de altura. Ervidel apenas teve de esperar pela passagem de um ser vivo, em condições, para se materializar. Para ajudar provocou um apagão geral na zona, que atraiu para lá alguns meliantes, piquetes da companhia de electricidade e alguns polícias, tudo gente sem a mais pequena importância. Teve de esperar algumas horas até aparecer uma jornalista que possuiu no momento em que ela tocou na mala. A partir desse momento poderia mudar de hospedeiro sempre que se justificasse e não houvessem perdas de energia desnecessárias, mas deixou-se ficar naquele corpo interessante.

A sua primeira missão foi reeducar a sua hospedeira de maneira a poder extrair-lhe todas as potencialidades.

A cidade entrou em pânico com o aparecimento de algumas pessoas horrivelmente mutiladas. Em cada bairro que passava deixava o caos instalado. O seu poder aumentava de forma brutal à medida que possuía as almas dos inúteis que liquidava e o seu maior poder começou a tomar dimensão: a invisibilidade. Mas isso tinha as suas desvantagens, para manter a invisibilidade dentro de um corpo humano tinha que extrair todo o sangue de outro a cada hora que passava, quando não o fazia o corpo possuído tornava-se zombie e tinha que procurar outro hospedeiro.