sábado, 11 de dezembro de 2010

051 o louco impossível

De um momento para o outro a sua vida desmoronou-se. Abria e fechava os olhos não querendo acreditar no que lhe estava a acontecer. Já nem era uma questão de demónios escondidos no seu sub-consciente, mas a realidade desenhada em cores sombrias que levara ao brutal assassinato de todos os seus conhecidos, desde a família, à namorada e filhas, aos amigos e meros conhecidos.

Estava em casa envolto num oceano de sangue que lhe brotava do peito sem parar. Lá fora ouviam-se as sirenes e na televisão falava-se de uma chacina sem precedentes num  país pequeno junto ao Atlântico. Não, não era um simples pesadelo do qual pudesse acordar. A realidade mudou bruscamente e a loucura instalou-se no seu mundo de ideias feitas. Claro que havia de fazer parar o sangue de jorrar livremente do peito, travar as dores tenebrosas que lhe apanhavam a cabeça, serenar tudo e, quem sabe, acordar de novo como se não fosse nada. Mas era e ao mesmo tempo que ouvia a polícia a chegar ao seu apartamento, subiu ao sótão e rebentou com as telhas. Fugiu, completamente nu e ensanguentado. No desvario da situação tropeçou e caiu para a rua. Tudo ficou negro, não se conseguia mexer e a polícia fechava todas as possibilidades de escapar. Ninguém imaginaria que pudesse ter salvo um osso que fosse daquela queda aparatosa. Porém o pesadelo dos perseguidores transformou-se em realidade e deu-se um fenómeno meteorológico raro, com um temporal indescritível que alagou toda a zona em volta dos seus corpos, arrastando-os para parte incerta.

Horas depois acordou e o Sol brilhava, mais intensamente que nunca. Muito rapidamente pôs-se de pé, vestindo um fato impecável, com uma gravata de fino corte e uns sapatos de marca internacionalmente reconhecida, caminhava apressadamente rumo a algum sítio.

Esteve nesta azáfama algum tempo. Parou num quiosque e viu os jornais a anunciarem um suposto serial killer que desaparecera misteriosamente na noite passada, após ter deixado atrás de si um gigantesco rasto de sangue e corpos despedaçados. Seguiu, como se nada daquilo tivesse algo a ver consigo. Não tinha porque ao passar por um espelho não reconheceu a sua própria cara. Não se assustou, buscou um banco de jardim e sentou-se, inspirando profundamente para entender o porquê daquilo tudo.

Primeiro tirou a carteira, vasculhando os cartões e possíveis fotos. Viu apenas o cartão do trabalho e a carta de condução. O nome não condizia com o seu, apesar da cara ser a mesma. Aos poucos começou a entender que aquele passo de loucura era tão somente a possessão de outro corpo. O porquê já lhe havia sido explicado, era tempo de começar a entender.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

050 país de exílio

Se por acaso tivesse de voltar ao seu país, abdicando das conquistas efémeras ia ver apenas um futuro negro à sua frente, como se fosse uma doença e à sua espera estivesse o vírus da recaída. Não que vivesse no paraíso mas à medida que iam passando os dias sentia menos necessidade de voltar àquele modo de vida sem sabor e às pessoas que tinham pena da sua condição por detrás de um sorriso de circunstância. Aquilo que havia sido a fuga ao Inferno sem chamas estava de novo a transformar-se no regresso, como se fosse uma sina viver entre batalhas do que não gostava, nem sequer fazendo um pequeno esforço.

A relação com a namorada esfriara um pouco apesar dos intensos calores por quase nada. E voltando à estaca zero, nem calores nem frio, apenas um vazio que não deixaria ninguém preencher.

Era tempo de colocar-se de frente para a montanha, mesmo sem frio ou nuvens carregadas de desespero, apenas uma vista para o desejo de alcançar o topo do seu próprio mundo. Conseguia um sorriso e uma certa dose de alívio quando colocava o pensamento positivo e alguma resignação à frente do destino e das costumeiras fatalidades.

Agora que olhava para o Céu e já não se desgastava com as cinzas de fracassos passados, sempre podia ir de encontro ao ansiado momento de felicidade em que ela se acercou do seu corpo suado e o beijou com um amor desmedido. Nem parecia o primeiro beijo de alguém novo na sua vida, apenas a noção de que as suas reticências à permanência no país de exílio estava plenamente justificada com a simples existência daquele ser de uma generosidade sem limites.

Foi através dela que tomou contacto com um habitante da terra que lhe deu as notícias acerca do seu envolvimento na guerra que se travaria no anunciado Apocalipse. Pouco dado a especulações e a retratos dramáticos da sua própria pessoa, começou a ser tomado de assalto por pesadelos ainda mais envolventes que a sua vida de carne e osso. Afinal a sua deslocação não era fruto do acaso, bem como a progressiva surdez, presente na definição do seu carácter, primeiramente introvertido e depois cada vez mais anti-social.

Apesar de tudo dava-se ao natural trabalho de dar todo o conforto possível às filhas dela, em profunda revolução hormonal.