sexta-feira, 27 de maio de 2011

070 os olhos calmos

Poucas eram as ocasiões que o levassem a tomar as atitudes próprias de um arruaceiro. A sua proverbial calma manifestava-se sobretudo no olhar, quase ternurento, bastas vezes calmo, apesar da aparente dureza.

A ela interessava-lhe mais a mera definição de porta para a alma, esmiuçando qualquer pormenor ao que previsivelmente se fosse encontrar.

Juntos tornaram-se implacáveis, sobretudo quando em harmonia, partindo para a dissolução definitiva de tradições, que, sabiam não interessar ao mundo em revolução. Foi assim, numa noite estrelada e calor sufocante, que reduziram a mera memória os aficionados de uma festa taurina que culminava com a morte do touro no auge do delírio da assistência. Desde os patrocinadores ao próprio toureiro, todos foram contemplados com uma ferida ainda mais profunda que qualquer das chagas de Jesus.

Eram especialmente maus com aqueles que se intitulavam fervorosos seguidores de Deus, como se os touros fossem criaturas de Lúcifer ou extra-terrestres sanguinolentos propícios a excitações descontroladas.

Sempre com um olhar tranquilizador levava os iluminados para uma outra dimensão. Não lhes interessava se entendiam. A seu tempo e com os métodos adequados ganhariam a sua independência espiritual.

Este foi apenas o começo da grande reviravolta. Nem Arturo, nem Flor ou qualquer outro dos peregrinos podiam voltar atrás. Tinham sobre os seus ombros todo o tipo de iras e isso só podia ser dominado conjugando esforços e atenções redobradas para o extermínio dos pecados dos humanos perdidos.

O silêncio... era impressionante, o que eles diziam em silêncio, como se fosse a descoberta espontânea de um novo tipo de linguagem, sem margem para dúvidas ou qualquer tipo de interpretações erradas. Babel e as
confusões que daí advieram haviam terminado com o aparecimento da Sagrada Loucura. 

Arturo deu-se conta da sua importância analisando os seus antigos sonhos e, sem nunca ter proferido uma palavra tornou-se líder incontestado entre os seus 36 pares.

Ainda havia que disputar o medo angustiado dos povos em aderir a uma linguagem única e assim se declararam guerras, diminuindo a população predisposta a essa revolução, sendo cumprido o desiderato de líderes de povos altamente envolvidos por tecnologias de ponta apesar da tremenda fraqueza de espírito que norteava os seus concorrentes directos.

Houvesse a mesma sede de vingança que levasse ao equilíbrio da balança. Assim todo o Além em alvoroço pudesse sorrir a um alerta de captura extra-sensorial.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

069 os dias lentos e a alegria

Por breves minutos voltava a um passado não muito distante, em que os cérebros ainda não conseguiam dar ordens ao corpo para voar e este fazê-lo. Apenas recordar os dias de intenso trabalho e os silêncios comprometidos com um amor nascente.

A primeira vez que beijara Flor fora o dia da mudança para o apartamento da cortinas vermelhas. O suor abundava, mas uma qualquer reacção química fez com que Flor o abraçasse, não demorando muito até darem o primeiro beijo, lânguido e lento, pleno da energia necessária para sentir os dias a correrem sem penas ou torturas de insistente vazio.

Nesse dia nem sequer explodiram os orgasmos inquietos nos dois. Apenas um forte abraço e beijos ainda mais humedecidos que o próprio corpo dele.

Lançou um sorriso para o ar e olhou para a gaveta onde estavam arrumadas as cortinas vermelhas. O telemóvel tocou e era uma das filhas, que pedia a mãe em casa com a máxima urgência. Mais tarde dar-se-ia conta que, apesar das complicadas relações entre a mãe e as filhas, o profundo amor prevalecia sobre todos os demónios circundantes.

Mantiveram o segredo bem guardado durante algum tempo. Claro que tanta paixão iria provocar o ciúme da vizinhança, desavinda com o amor próprio. Um gay sem escrúpulos, ao serviço de um demónio ainda mais atormentado, fora apenas o início de uma visibilidade que ambos tinham querido adiar o mais possível.

Junte-se  um bando de alcoólicos crónicos e entende-se como se tornava difícil a Arturo manter a calma. Mas manteve-a e o amor nascente por Flor permitiu-lhe evitar ser absorvido pelos guerreiros do bem ou do mal.

Mais tarde juntar-se-ia o sexo desenfreado e pleno de orgasmos intensos, que apenas acentuava o isolamento dos dois e ao mesmo tempo a consciência plena de ter de assumir a terceira via, a única fora do alcance das invenções humanas, para se auto-apaziguarem.

O gay demonizado não apareceu morto, nem sequer foi perpetrada qualquer vingança, apenas lhe foi retirada toda a alegria possível e o amor-próprio. Talvez por isso converteu-se ao alcoolismo e à prostituição, tendo posteriormente sido preso por posse de droga.

As noites passavam-se mais depressa quando dormiam juntos, como se os fluídos vitais que transferiam entre os dois fosse a urgência de terminar o sonho e viver a realidade, por mais dura que fosse. Foi por esta altura que Arturo se apercebeu que quando fechava os olhos às vezes se deparava numa dimensão inteiramente nova, que lhe rejuvenescia o coração quase até ao início da sua mais recente encarnação.

sábado, 21 de maio de 2011

068 as abordagens decisivas

Viu-se algo a cair no vazio. Alguns orientavam a visão no sentido do espaço mais provável para que ficasse definido onde iriam cair os pedaços, posteriormente esmagados, do que parecia ser carne humana.

Seguiram para o ponto de impacto, muitos com medo do que pudesse acontecer, outros apenas curiosos, até excitados.

Do chão saiu uma serpente com a cauda na boca. Braços ergueram-se ao céu e de um reles burburinho rapidamente se passou a um estridente histerismo. Alguns quiseram logo escrever acerca do sucedido, outros desmaiavam da comoção, outros paralisavam apenas da cobardia por algo que não se esforçavam por entender.

A noite instalava-se no horizonte e a Lua Azul aparecia, imponente. Alguns sorriram na perspectiva de garantir a reencarnação, outros, imbuídos do espírito de concretizar desejos recalcados e sem vitória anunciada. Outros simplesmente partiam, quebrando o elo de segurança.

Na perspectiva de quem estava em queda imaginava-se a arrogância própria dos que descortinam as artimanhas do destino e a insegurança que isso implementa na imagem que depressa se desgasta e arruina a sua própria existência.

Ainda foi possível imaginar um corpo perfeito com a capacidade de se metamorfosear consoante os interesses da carne desvairada, impura. Assim a juventude de um corpo poderia ser potenciada até ao extremo se se justificasse alguma acção que permitisse a sua continuação entre os terrenos.

Deu-se o passa-palavra. Era tempo de começar os projectos que, pela lenda criada, se tornavam facilmente bem sucedidos. Apenas se levantou a questão de como seria o concretizar de algum plano maquiavélico baseado nessas premissas.

Entretanto noutro ponto do mundo alguém tinha um sonho, pleno de símbolos e misticismo.

No seu corpo apenas calor. Levantando voo passeava-se entre entes que se revelavam apenas no extremo da experimentação de uma mente ultra-disciplinada. O pressentimento geral nesses casos era o de que algo poderoso estaria para acontecer.

A nudez não era castigada com o degredo ou alguma forma de punição, apenas importava a forma do revestimento da alma, o sentido da mortalidade esbatido na ausência de gravidade, talvez uma verdade irredutível na imensidão de entes que operavam num aparente vazio.

Apenas porque alguém se tinha visto a si próprio na pele de salvador do mundo a Terra tremia.
A sombra embutida e castradora da pureza inicial, não poderia ter aqui o seu lugar. Apesar disso a porincesa das trevas cirandava, disfarçada de anjo, promovendo uma ilusória sensação de segurança.

Arturo apenas fechara os olhos por um mero segundo.

sábado, 14 de maio de 2011

067 até não haver mundo

O seu aspecto normal convidava ao desprezo. A sua falta de resposta a dizeres sem piada a ser apelidado de esquisito, como se fosse obrigatório rir por rir. Talvez por isso fosse a favor da liberdade total, sem resquícios da famosa ordem mundial que, de tempos a tempos, um grupo de milionários de mãos ensanguentadas tentava impor ao mundo.

Arturo tanto despertava comunista, como burro ou fascista,  porém nenhuma das três situações se aplicava em definitivo à sua pessoa, ainda assim e por defeito de fabrico congeminava uma quarta via que passara a ser a possível desde que Deus e Lúcifer haviam apostado nele para aniquilar o inimigo. 

Estava-se bem nas tintas para o desespero de só poder contar com Deus em horas de profunda maldade provocada pelos delírios do famoso anjo caído. Ainda assim havia sido protegido pelos dois, até que se rebelou, em silêncio e se dedicou a salvar os humanos no que fosse possível.

Mais do que tudo estranhava a indiferença das gentes quando o seu corpo se elevava no ar, o que o fez pensar mesmo que o ideal seria acabar de vez com o mundo da forma podre como ia sendo desgovernado. Com paz ou com guerra, tudo seria sereno e com doses de extremo prazer a quem se comprazesse com ele.

Até não haver mundo exterminaria todos os seres comprovadamente doentios, sem que fosse permitido aos donos das clínicas chupistas de pseudo-recuperação enriquecerem à conta de desordens irreparáveis.

Foi sem espanto que começaram a aparecer corpos carbonizados em florestas queimadas. Se lá estavam alguma culpa teriam. Na mente dos peregrinos havia de ter certezas absolutas e eles nunca duvidavam dos actos necessários para acabar de vez com qualquer tipo de criminoso.

As parcas gotas do fluído lançado em cima dos carvalhos fizeram com que o pior defeito de cada um sobressaísse aos olhos dos peregrinos, sendo essa a forma justa de eliminar os verdadeiros pecadores que apenas serviam para fazer florescer as ervas daninhas de uma sociedade cada vez mais doente.

Sem surpresa muita gente desapareceu do mapa, outros severamente castigados, outros apenas seguiam a sua vida mais ou menos fútil, mas sem implicações na podridão reinante.

O mais complicado de dominar era a multiplicação da perversão em gente supostamente ligada ao comércio do Bem.

domingo, 8 de maio de 2011

066 a árvore do sonho

Levantou-se e saiu de casa. Nem preparou o que era costume, até porque os costumes haviam deixado de o ser. Dirigiu-se para um parque, mesmo no meio da cidade, sentou-se junto a um carvalho gigantesco e vinda do seu coração sentiu-a junto aos seus lábios. Com a excitação natural que se desprendia, deleitaram-se com beijos profundos, enquanto o frenesim que provocavam parecia seguir sem efeito nos que passavam, rumo ao costumeiro vazio de cada dia.

Em pouco tempo despiram-se e as carícias multiplicaram-se provocando um exacerbado movimento de hormonas que, ao colidirem, formavam um orgasmo quase precoce.

Ninguém parecia preocupar-se a não ser um querubim que se havia escapado do Céu e das suas rotineiras obrigações.

Fizeram amor junto ao carvalho e o querubim ria a bandeiras despregadas, até que dois anjos da brigada dos bons costumes optaram por o levar preso a ele, para que a coisa não se tornasse um deboche pegado.

O querubim ainda se ria, mas os anjos de mau feitio castigaram-no severamente até que este desabou num choro infantil, aos berros com ranho a cair do nariz celestial e que depois diria ao Papá e eles iriam ver como lhes doía!!!

Arturo e Flor levantaram-se e como que por magia estavam outra vez cobertos com roupa. Já havia quem olhasse para eles e em pouco tempo iriam parar a algum tipo de calabouços.

Apenas se limitavam a passear pela cidade onde se haviam conhecido. Em pouco tempo passaram da total indiferença ao incómodo de se sentirem permanentemente observados, mas para isso contavam com os outros 70 que formavam uma espécie de aura que afastava todos os indesejados do caminho deles. 

A polícia passava, mas nada fazia, enquanto as velhas gaiteiras se apalpavam como que tomadas de assalto por alguma dose de excitação fora do normal para a sua natural fealdade cerebral feita de costumes mal amanhados.

Estavam decididos a erradicar essas noções abjectas profundamente enraizadas num povo rural que tinha a mania que era citadino. Nem a bem, nem a mal, apenas que pensassem pelas suas próprias cabeças, o que era risível atendendo à natural dependência humana nas opiniões e actos alheios. Desligar a corrente e desviá-los da vontade de conexão com o normal estabelecido.
A primeira missão era juntarem-se nos 7 carvalhos gigantes, atracção principal da cidade. Formaram grupos de 10 e cada grupo um circulo perfeito em volta de cada carvalho. Arturo deu a mão a Flor e os pés saíram do chão, voando até se fixarem a 70 metros exactos de altura, numa linha recta em direcção ao carvalho central. Beijaram-se e soltaram um microscópico fluído que mudaria a vida de todos naquele pequeno espaço do Planeta Terra.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

065 o esplendor de março

A mulher era mesmo bonita, de tal forma que tanto Arturo como Flor a observaram com toda  a atenção,  como que hipnotizados e alheados ao degelo dos últimos dias de Inverno.

Já não havia vista para a montanha, apenas as recordações daquele esplendor feminino que abalou as estruturas de um amor supostamente inabalável. Apenas tirava alguma emoção do facto de Flor estar distraída e ele poder contemplar sem objecções.

Ele viu o mar e os desejos de seguir um caminho menos sinuoso uma mera anedota, todos afogados em maremotos sem fim como se tudo fosse um castigo do Inferno cruel, como afinal deviam ser todos os Infernos.
Desviou o olhar e seguiu Flor por uma rua estreita, de cheiro nauseabundo e alguns árabes a falarem, contentes de alguma coisa que nem se atrevia a querer decifrar. Ainda assim via o mar, que engolia os pecados de mais um Inverno prestes a ser triturado por mais uma sessão de aquecimento global, uma disciplina em franco desenvolvimento e com imensos alunos para lá de perfeitos na sua execução. 

Ao longe escutava uma voz lamuriosa que cantava que 'o amor não serve de nada' e os pêlos dos braços eriçavam-se provocando excitação no contacto das duas peles apaixonadas. Os instintos estavam ao rubro e a possível felicidade advinha de ainda se poder contar com o renascimento anual da natureza.

Junto ao rio encontraram-se todos os 72 peregrinos da sagrada loucura. Era o 8 de Março e podia sentir-se todo o esplendor feminino de Flor a expulsar toda a energia negativa dos eleitos.

Do nada surgiu um relâmpago e a entidade que os perseguia de longe, revelou-se a Arturo.

Voltou a fechar os olhos, como fazia sempre que algo inacreditável acontecia. Quando os reabriu viu um ser exactamente igual a si. Em absoluto silêncio olharam um para o outro. Esse silêncio tomou conta de tudo o que os rodeava e foi então que o clone falou:

'Não sou apenas uma versão aperfeiçoada de ti, nem sequer te vou informar o que sou e a influência que possa ter em ti, a resposta está dentro dos teus olhos.'

Arturo sentiu-se de novo no comando das operações, a entidade apenas apalpava terreno e nada do que dava a entender nas entrelinhas o condicionaria para levar avante a sua missão. Voltou-lhe as costas e prometeu-se que daí em diante apenas se concentraria na cruzada desmistificadora do bem e do mal. Afinal o grande enigma revelado no cofre, que fora a sua obsessão enquanto mero homem, fora apenas o alcançar de uma vida normal.

Lá longe vislumbrava de novo a montanha dos sonhos e pesadelos.

domingo, 1 de maio de 2011

064 o lugar austero

Abrir os olhos já era de si uma aventura. Arturo tomou consciência de que a cada momento poderia estar numa realidade diferente. Ciente dos seus poderes sobre-humanos decidiu criar uma Sociedade Secreta baseada naquela loucura que se lhe deparava a cada instante.

De regresso à casa onde vivera a vida quase toda atraiu todas as pessoas importantes na sua vida, mesmo aquelas supostamente virtuais a quem lhes podia conferir a carne e os ossos que sempre lhes imaginara para além da cara, nem sempre bonita.

A casa era um espaço fechado de memórias já gastas e pessoas esquecidas. Os pais ainda viviam por ali, mas entre si pouco falavam chegando a desconhecer se o outro estava sequer em casa.

Peregrinos tinham de o ser todos que o caminho para a salvação exigia esforço quase inumano e, neste caso, a conjugação de esforços permitiria lutar contra o bem e o mal instaurando a loucura saudável como meio de prolongar a sanidade mental das pessoas a desbloquear. Tudo se tornava então sagrado e Arturo auto-nomeou-se Peregrino-Mor da Sociedade Peregrina da Sagrada Loucura. Conseguiu juntar um número considerável de pessoas, terminando a escolha ao atingir 72. Devido às suas capacidades especiais foi unanimemente designado Peregrino Sagrado. Todos os outros passaram-lhe a obedecer até que a morte os separasse dos corpos e almas e migrassem para uma realidade e corpos novos.

Ainda assim manteve-se o mesmo homem. Quando abandonou a casa já todos sabiam qual a sua função no Planeta Terra e deviam cumpri-la pelas directrizes do Peregrino Sagrado, sob pena de o mundo não ter salvação possível.

Arturo foi buscar Flor e num ápice viram-se num resort de luxo com todas as comodidades possíveis aproveitando as suas novas capacidades. Como seria de imaginar o mundo envolvente era preenchido com miséria absoluta. Só que não se podia sentir culpado de querer amar a sua mulher antes de se dedicar a desdizer milénios seguidos de mitos humanos.

O coração batia com mais força e os orgasmos soltos no êxtase de um amor colhido no fim do mundo uma forma de fortalecer a nova e indelével vontade de viver.

Longe estava do homem aparentemente calmo que se passeava pelos lugares austeros da vida, sem sequer ter o gozo de apreciar pecados apenas disponíveis aos distintos servos de Lúcifer.

Tanto Deus como Lúcifer começavam a preocupar-se com a anunciada desmistificação da sua existência perante as infinitas fraquezas humanas.

063 o tempo das crianças

Antes de Flor, o seu contacto com crianças contava-se pelos dedos de uma só mão e das suas próprias memórias enquanto tal. Era esse o motivo do seu súbito envelhecimento e o nojo que sentia por uma rotina que apenas lhe acentuava o desejo de desaparecer.

Depois de conhecer Flor essa força de vida que vinha da energia inesgotável das suas filhas, fez com que os desejos de terminar passassem a ser a luta para modificar o mundo que o rodeava. Possivelmente devia ser um pouco mais humilde, mas era essa ausência de capacidade de risco que o fascinava e que lhe fez desaparecer o medo, incutido desde o início da vida.

A beleza de cada uma tornava-se apenas uma forma de se tornar agressivo com quem achava que lhes fazia mal. Não que quisesse transformar-se no pai, mas apenas pelo amor puro que lhes nutria. Claro que Flor era a responsável por esse estado de coisas, tornando-se naturalmente na co-fundadora do movimento da sagrada loucura, nem do bem, nem do mal. Logo se veria onde tudo iria parar depois do vendaval assentar e se dos destroços algo se pudesse aproveitar.

Arturo estava particularmente calmo quando as tinha perto de si, a brincar, a saltar, aos gritos e a correr de um lado para o outro. 

Nos dias de solidão generalizava-se um sentimento de apatia que chegava a por em causa a execução da sua missão. 

Num desses dias de solidão foi à janela. Nada o ofuscava, nem sequer o absoluto silêncio que parecia ter afugentado todos os seres do Planeta. No meio da estrada quatro crianças saltavam à corda, nada de estranho até ao momento em que todas se viraram, olhando para ele e de repente dos contos obscuros e iluminados começaram a aparecer pessoas que se moviam com dificuldade. Ao mesmo tempo abriu a janela e voou dali para fora. Olhou para trás e viu quatro vultos a subirem na sua direcção. O ar angelical havia sido substituído pela imagem da cabra, Lúcifer cirandava por ali. Anjos e demónios. Ele sabia ser um fruto apetecido e a consciência tornava-se cada vez mais clara.

Parou em pleno ar, esperando pelo que o perseguia. De repente um verso entoou em volta de todo o seu corpo:

'quando o pão que comes sabe a merda o que faz falta?
o que faz falta é avisar a malta!'

Seguiu outra vez, a toda a velocidade, agora imbuído de uma raiva sem limites. O resultado foi algo frustrante, como se tudo não passasse de um mero delírio, que por mais que avisasse a malta todos pareciam meras anémonas amorfas, sorrindo pela sua vidinha pobrezinha e sem sentido, facilmente esquecida após terminar. Voltou à rua de onde saíra, aterrando onde as crianças antes saltavam à corda. Foi como se nada tivesse acontecido.A vida seguia como antes, mas alguém observava-o à distância.