quarta-feira, 25 de maio de 2011

069 os dias lentos e a alegria

Por breves minutos voltava a um passado não muito distante, em que os cérebros ainda não conseguiam dar ordens ao corpo para voar e este fazê-lo. Apenas recordar os dias de intenso trabalho e os silêncios comprometidos com um amor nascente.

A primeira vez que beijara Flor fora o dia da mudança para o apartamento da cortinas vermelhas. O suor abundava, mas uma qualquer reacção química fez com que Flor o abraçasse, não demorando muito até darem o primeiro beijo, lânguido e lento, pleno da energia necessária para sentir os dias a correrem sem penas ou torturas de insistente vazio.

Nesse dia nem sequer explodiram os orgasmos inquietos nos dois. Apenas um forte abraço e beijos ainda mais humedecidos que o próprio corpo dele.

Lançou um sorriso para o ar e olhou para a gaveta onde estavam arrumadas as cortinas vermelhas. O telemóvel tocou e era uma das filhas, que pedia a mãe em casa com a máxima urgência. Mais tarde dar-se-ia conta que, apesar das complicadas relações entre a mãe e as filhas, o profundo amor prevalecia sobre todos os demónios circundantes.

Mantiveram o segredo bem guardado durante algum tempo. Claro que tanta paixão iria provocar o ciúme da vizinhança, desavinda com o amor próprio. Um gay sem escrúpulos, ao serviço de um demónio ainda mais atormentado, fora apenas o início de uma visibilidade que ambos tinham querido adiar o mais possível.

Junte-se  um bando de alcoólicos crónicos e entende-se como se tornava difícil a Arturo manter a calma. Mas manteve-a e o amor nascente por Flor permitiu-lhe evitar ser absorvido pelos guerreiros do bem ou do mal.

Mais tarde juntar-se-ia o sexo desenfreado e pleno de orgasmos intensos, que apenas acentuava o isolamento dos dois e ao mesmo tempo a consciência plena de ter de assumir a terceira via, a única fora do alcance das invenções humanas, para se auto-apaziguarem.

O gay demonizado não apareceu morto, nem sequer foi perpetrada qualquer vingança, apenas lhe foi retirada toda a alegria possível e o amor-próprio. Talvez por isso converteu-se ao alcoolismo e à prostituição, tendo posteriormente sido preso por posse de droga.

As noites passavam-se mais depressa quando dormiam juntos, como se os fluídos vitais que transferiam entre os dois fosse a urgência de terminar o sonho e viver a realidade, por mais dura que fosse. Foi por esta altura que Arturo se apercebeu que quando fechava os olhos às vezes se deparava numa dimensão inteiramente nova, que lhe rejuvenescia o coração quase até ao início da sua mais recente encarnação.

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