domingo, 1 de maio de 2011

063 o tempo das crianças

Antes de Flor, o seu contacto com crianças contava-se pelos dedos de uma só mão e das suas próprias memórias enquanto tal. Era esse o motivo do seu súbito envelhecimento e o nojo que sentia por uma rotina que apenas lhe acentuava o desejo de desaparecer.

Depois de conhecer Flor essa força de vida que vinha da energia inesgotável das suas filhas, fez com que os desejos de terminar passassem a ser a luta para modificar o mundo que o rodeava. Possivelmente devia ser um pouco mais humilde, mas era essa ausência de capacidade de risco que o fascinava e que lhe fez desaparecer o medo, incutido desde o início da vida.

A beleza de cada uma tornava-se apenas uma forma de se tornar agressivo com quem achava que lhes fazia mal. Não que quisesse transformar-se no pai, mas apenas pelo amor puro que lhes nutria. Claro que Flor era a responsável por esse estado de coisas, tornando-se naturalmente na co-fundadora do movimento da sagrada loucura, nem do bem, nem do mal. Logo se veria onde tudo iria parar depois do vendaval assentar e se dos destroços algo se pudesse aproveitar.

Arturo estava particularmente calmo quando as tinha perto de si, a brincar, a saltar, aos gritos e a correr de um lado para o outro. 

Nos dias de solidão generalizava-se um sentimento de apatia que chegava a por em causa a execução da sua missão. 

Num desses dias de solidão foi à janela. Nada o ofuscava, nem sequer o absoluto silêncio que parecia ter afugentado todos os seres do Planeta. No meio da estrada quatro crianças saltavam à corda, nada de estranho até ao momento em que todas se viraram, olhando para ele e de repente dos contos obscuros e iluminados começaram a aparecer pessoas que se moviam com dificuldade. Ao mesmo tempo abriu a janela e voou dali para fora. Olhou para trás e viu quatro vultos a subirem na sua direcção. O ar angelical havia sido substituído pela imagem da cabra, Lúcifer cirandava por ali. Anjos e demónios. Ele sabia ser um fruto apetecido e a consciência tornava-se cada vez mais clara.

Parou em pleno ar, esperando pelo que o perseguia. De repente um verso entoou em volta de todo o seu corpo:

'quando o pão que comes sabe a merda o que faz falta?
o que faz falta é avisar a malta!'

Seguiu outra vez, a toda a velocidade, agora imbuído de uma raiva sem limites. O resultado foi algo frustrante, como se tudo não passasse de um mero delírio, que por mais que avisasse a malta todos pareciam meras anémonas amorfas, sorrindo pela sua vidinha pobrezinha e sem sentido, facilmente esquecida após terminar. Voltou à rua de onde saíra, aterrando onde as crianças antes saltavam à corda. Foi como se nada tivesse acontecido.A vida seguia como antes, mas alguém observava-o à distância.

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