quarta-feira, 14 de julho de 2010

026 longínquas vidas

O passado era uma espécie de castigo que o impedia de abraçar qualquer espécie de relacionamento. Foi assim durante grande parte da vida em que devia ter-se dedicado a mais bebedeiras e momentos sóbrios com maior qualidade. Certo era que em cada momento que se afigurava como presente dava graças por poder compartilhar a vida com uma mulher a quem não prestara a devida atenção no inicio de uma relação cada vez mais sem fim à vista. 

Quando se afastava desse presente era como que o fantasma de longínquas vidas, que lhe haviam moldado a alma para esta encarnação, voltassem sobre a forma de um pesadelo em que um homem sem cara se deixava cair tranquilamente sobre um manto de pregos ardentes que lhe arrancavam a pele sem o fazer desfalecer. Claro que acordava suado e com vontade de fugir da cama vazia, dos tormentos por que passava até o despertador tocar.

O que o preocupava mais nem era ficar desempregado, apenas não poder aplicar num herdeiro do seu sangue alguma da sua vontade de viver num mundo menos negro, como se assim fosse mais fácil aceitar a rotina imposta pelo coração.

Porém as sementes plantadas estavam dinamitadas e as ervas daninhas cresceriam sempre mais que a natural composição de flores que apenas seriam uma modesta falsificação de um projecto de vida a que faltaria sempre o elemento surpresa, propositadamente esquecido com a desculpa de resolver problemas que ficariam sempre para além de uma vida incompleta. E seria delicioso saber o composto de uma vida completa, como se o auge da contemplação humana lograsse ultrapassar a sua maior invenção: o divino.

Apetecia beber um cocktail, daqueles bem misturados por mãos experientes, que depois escorregaria garganta abaixo da mesma forma que algumas mulheres iluminadas têm os seus orgasmos. Sorria diante desses feitos de despudor total, e ainda perante a máquina infernal dos distribuidores de almas pelos diversos cantos aos quais pertenceriam, por decreto ou mistificação consubstanciada, as moedas frequentemente abandonadas na caixinha dos pobres da paróquia mais pequena do mundo cuja localização só ele conhecia.

Ao abraçar as memórias que o ligavam a um passado para além das cortinas vermelhas, que o separavam do presente, sentia as vidas em si a palpitarem de desejo por algo diferente e desconhecido.

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