domingo, 5 de junho de 2011

071 os lábios trémulos

Noite após noite Cecília regressava ao mesmo sonho, que começava no carro, onde viajava com o marido e o filho. Iam sempre a caminho da Adraga, num amontoado de curvas e contra-curvas, cada vez mais estreitas. A certa altura apercebia-se que a praia já ficara para trás e que estava na parte de trás do carro, estando o seu filho no lugar do morto. Com estranheza ainda maior voltava a ver a estrada. Olhasse para onde olhasse apenas se descortinava um nevoeiro denso, possivelmente escondendo um precipício sem fim. A viagem terminava, invariavelmente, com o carro a ser engolido por uma onda gigante, seguindo para as profundezas do Atlântico. Sempre a descer, ao mesmo tempo que uma profunda sensação de medo a dominava. 

Acordava quase sempre em sobressalto, mas tinha num desejo intenso de descobrir o final do sonho, talvez para saber até onde o seu coração aguentaria. Tudo servia para acrescentar novos pontos de interesse a uma história que não podia ser apenas produto do seu cérebro, porque afectava os seus movimentos diários mais banais.

Noutro sonho Cecília estava internada na ala psiquiátrica do Hospital Surreal de Dali. Os gritos e a loucura, envoltos num manto negro de desejo, enfraqueciam-lhe cada vez mais o corpo, enquanto a alma vagueava nas trevas. O corpo apenas viveria ate encontrar a solução final encontrada na fusão de sonhos sem sentido aparente.

Noutro sonho ainda, já de olhos abertos, Cecília imaginava-se possuída pelo espírito de um homem que teria sido a sua alma gémea nas diversas encarnações anteriores. no entanto, a cadeia de acontecimentos era, invariavalmente, interrompida com a condenação dos dois seres ao degredo eterno. E no último segundo a mensagem continha sempre os sinais da aproximação do Apocalipse.

Mais estranho tudo se tornava quando se deu uma inexplicável onda de suícidios em que cada bilhete de despedida mencionava sempre um anjo negro, ainda preso num corpo, que obrigava os suícidas a se auto-mutilarem até ele não ter onde se prender, morrendo em sofrimento atroz, sempre em crescendo até o coração explodir.

Todos viajaram num mesmo avião cujo destino era o Rio de Janeiro e decerto que o acaso estava posto de parte por razões de conveniência.

Um homem, de nome Thomas, ardia espontâneamente enquanto cantava acerca de sonhos eléctricos, até as cordas vocais arderem e a vida se acabar. Passados segundos, qual Fénix, regressava à forma anterior, voltando uma e outra vez aos sonhos eléctricos e ao estado de carbonizado.

Cecília tinha os lábios trémulos da dor que a castigava, ainda assim conseguia arranjar tempo para viver, consumir substâncias ilegais e um beijo que sempre a fazia rejuvenescer.

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