domingo, 14 de novembro de 2010

045 mortos intranquilos

Muitas eram as casas onde se deixara de dormir com tranquilidade. Era cada vez mais frequente ver homens em pijama e mulheres em camisa de noite, ambos na rua, com os olhos marejados de lágrimas vindas de um pesadelo que os impedia de dormir.

Tudo começou num último dia de Verão, em que a chuva torrencial trouxe consigo todas as almas penadas desde o tempo em que o homem se tornou incapaz de alcançar a fantasia narcisista do Eu absoluto com a extracção de uma costela decisiva, da qual dizem ter nascido a mulher. Qualquer laço familiar era o suficiente para uma dessas almas buscar o elemento familiar mais adequado para levarem a cabo o fim total da sua tormenta. Antes viajassem no dorso de um cavalo majestoso e fossem lançados no abismo sem retorno da droga e dos suplícios.

Não muito longe das cidades de vivos intranquilos haviam terras remexidas onde se abrigavam os corpos em decomposição. Porém, de forma desordenada, lançando gritos de dor, esses mesmos mortos saíam do seu suposto repouso, uns mais decompostos que os outros, todos lançando veneno para o ar e caminhando com a direcção própria dos sem coração, rumo ao destino incerto dos que os chamaram o esquecimento eterno.

A morte tem um motivo de ser e qualquer coisa que a perturbe, interrompendo-a e injectando-lhe vida é punição a dobrar., mesmo que seja o anjo Lúcifer o culpado de todos os males da humanidade.

Cada vez havia mais gente na rua, em puro desespero, experimentando uma sensação de morte, sem que o coração parasse nem a luz ao fundo do túnel se revelasse. Os mortos saíram dos seus recantos e chegaram rapidamente, em absurda agonia à procura do verdadeiro descanso, pondo à prova todas as melhores capacidades do escudo protector de cada um que encontravam pelo caminho. Não vertiam lágrimas dos seus  corpos secos, apenas vomitavam os vermes infectados pelo ar, atingindo cada um que manifestasse a mais pequena ponta de qualquer um dos pecados mortais.

Foi um desfilar intenso de recém-falecidos a juntarem-se à horda de extenuados condenados, mas também uma verdadeira  surpresa quando os vermes simplesmente se diluíam aos pés de seres absolutamente impolutos. Afinal naquela constelação de gente com premonições de morte e de dor, a própria morte não conseguia alterar o estado das coisas levando novos adeptos para ajudar o senhor das profundezas do Inferno na sua extravagante missão de ser ainda mais criativo que os humanos na destruição do mundo.

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