sábado, 27 de novembro de 2010

046 mortais e submissos

Enquanto isso o peregrino viajava, com a perigosa sensação de ser observado com toda a atenção no meio da multidão da grande cidade onde ia tratar de assuntos mundanos. Nem apertar a mão da sua namorada lhe dava alguma sensação de conforto, apesar de dominar o demónio real que tinha dentro de si. Afligia-o ainda a horda de transeuntes que deambulavam pelas ruas, sempre com o mesmo destino e expressão de ausência prolongada dos corpos em lenta decomposição, repletos dos infinitos medos de quem está sujeito a um ataque de coração sem se dar conta do que lhe passou.

Eram estes os próximos alvos dos mortos que regressavam ao contacto com o ar dos humanos, os mortais e submissos desenvolvidos mentais da civilização dourada que bebe de todas as influências externas à sua identidade.

E foi numa destas situações de indiferença que se deu um fenómeno raro que quase matava o peregrino. Não fosse Irael e a absoluta necessidade de manter vivo o receptáculo em que se instalara comodamente e a lava incandescente que apareceu do nada, chacinando os transeuntes desnecessários a alguma entidade invisível com poderes para dispor dos destinos individuais, quase o levava.

Tal como apareceu a lava desapareceu. Nem sequer ficou um vestígio da passagem do fenómeno, para que os jornalistas pudessem levar algo que fizesse subir as vendas dos jornais moribundos. E Lúcifer, narcisista por natureza, dava imensa importância a audiências pelo que a fúria destruidora não se fez esperar, caindo um avião militar carregado de engenhos explosivos programados para explodir em pleno coração de uma cidade grande em dia de greve geral e manifestações acirradas pela crise constante a que os seus demónios nos governos faziam passar os povos. 

Assim foi feito e o mal  não podia ser mais encoberto, gerando a famosa onda de solidariedade em torno das vítimas, abrindo-se contas bancárias de solidariedade e especulando-se que o terrorismo havia atingido o seu auge com esta operação, obra do demónio mais pérfido dos Infernos. Foi remédio santo para subirem as audiências e o lucro subjacente às mesmas dos mortais e submissos ao senhor das trevas. Mas algo mais lhes estaria destinado no fim dos dias. Lúcifer era feliz de todas as maneiras.

A uma distância relativamente curta de Lúcifer via-se uma espécie de tormenta a aproximar-se. O ruído aumentava de intensidade e o Céu enegreceu-se com rapidez, como que engolindo o Sol ficando a Terra entregue às naturais trevas provocadas pelos humanos. Ao mesmo tempo escutavam-se gemidos entre-cortados com gritos lancinantes de dor. Os mortos de todos os cemitérios levantavam-se das suas campas e buscavam a chacina necessária para alcançarem a paz eterna a que tinham direito.

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