sábado, 19 de junho de 2010

023 o teu rosto enevoado

As memórias que o faziam ausentar-se do corpo cansado de não fazer nada eram cortados pela abrupta sensação de que para além das improvisadas cortinas vermelhas havia algum muçulmano a rezar, mesmo na varando apenas esperando algum deslize bíblico para desintegrar o corpo em nome do seu deus. Para além de delírio constatava ser uma premissa válida que apenas o atormentava mais, apesar de não ter filhos e muito menos frequentar mercados apinhados de gente despreocupada pelas possibilidades dadas por cada um dos deuses em que acreditavam. 

Olhava com mais atenção e não passava de um mero pombo que depenicava algo que por ali caíra, vindo do andar de cima, possivelmente um pão inteiro que ia secando enquanto todos os dias ia sendo comido, sem o medo do fim do mundo que consome todos os supostos seres racionais. 

Sabia-lhe melhor a tese da conspiração, como se fosse um pretexto para manter a obscuridade de uma casa que lhe provocava insónias. Outra vez delineava-se um rosto, previsivelmente feminino embora a sombra tapasse as delicadas feições, os insinuantes trejeitos e a possibilidade de adivinhar um qualquer pensamento pelo odor exalado. Parecia-lhe o rosto enevoado da mulher que urgia amar e assim já podia fechar os olhos, substituir os pesadelos recorrentes pelo amor, que não tinha de ser apenas imaginário.

Visualizar aquele rosto imaginário apenas lhe trazia tranquilidade. Ao ligar o obsoleto equipamento de som que jazia ao lado da cama era uma forma de esquecer-se do ar frio que se abatera por aquela zona sem vontade de partir. Sorria sem saber para quem, apenas sentia que um qualquer amor o tinha seduzido para viver uma vida normal, a dois, com rotina e pedaços de gelatina depois do almoço.

O telefone costumava tocar pouco depois de adormecer, caindo num breve sonho idílico, era a sua namorada avisando que estava para chegar. Era real o amor que faziam, e que o rosto enevoado dos sonhos se transformava em realidade, talvez com encanto, seguramente carregado de doces dificuldades que apenas aumentariam do zero o gosto pela vida.

Sim, as filhas e a constituição de uma família, não porque é normal, mas apenas porque só isso o tornaria feliz, era o seu desejo e ele já o sabia há bastante tempo, mesmo antes de as conhecer.

Quando abria os olhos a consciência que o habitava não desvanecia o sonho, sentia-se dono do seu mundo e longe das utopias irrealizáveis, em que uma miserável conjugação de factores o iriam impedir para sempre de sentir a força de um amor puro entre homem e mulher   devidamente consubstanciado com um possível filho do dois.

1 comentário:

  1. Apetecia continuar a ler...lindo texto que nos prende do princípio ao fim. E quem é que hoje, está interessado nos novos acordos ortográficos???

    Gostei muito...felicidades!!

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