terça-feira, 6 de abril de 2010

006 irmãos do abandono

O vulto seguia cambaleando e da sua boca disforme saíam bocejos e palavras perdidas que apenas pediam para não ser mau. Acompanhava-o uma garrafa de brandy barato, quase vazia, e a pouco metros já vinha um polícia de cassetete na mão pronto para qualquer deslize que ele cometesse.

Do lado de cá das cortinas vermelhas um telefone tocava e ao atender expandia-se a dor de alguém que apenas desejava passar os seus dias sem outra coisa que não as miseráveis discussões que versavam sobre ciúmes doentios, como se depois de velhos ainda houvesse lugar ao rancor de possíveis deslizes cometidos na adolescência.

Ele lembrava-se daqueles dois gémeos que viveram na rua onde foi criado, tempos em que, no rés-do-chão não faziam falta gradeamentos anti-roubo ou venda de droga porta a porta. E vinha-lhe um arrepio pela electrocussão de uma menina, mesmo à entrada do pulmão da grande cidade, num acidente brutal do qual apenas restaram as memórias eternas.

Mas depressa subia ao primeiro andar e ao emaranhado de fios da rede telefónica que absorvia qualquer vista. Notava que em frente já não morava o mesmo tipo que assistia à televisão de tronco nu enquanto num gemido quase imperceptível se sentia uma mulher, entre as suas pernas cumprindo a função do duplo prazer. Pelo menos sorria perante essa situação, enquanto uma lágrima furtiva se escapava perante as atrocidades que eram cometidas entre casais, sem motivo, com abandono da dignidade, como se a felicidade se resumisse a uma facada no coração, muito embora a satisfação sobreviesse perante as pancadas cada vez mais violentas num corpo, que devia ser de prazer. Ele não via assim a sua mulher, era apenas amor e desejo carnal sem que alguma vez fosse possível compartir isso com alguém.

Entretanto ainda mais longe do vulto conjecturava-se sobre uma discussão violenta entre dois irmãos que chegaram a vias de facto com facas de mato, mutilando vida sem que no final restasse outra recompensa que não a da pura amargura, pela morte indesejada ou pelo ódio acicatado que posteriormente viria a provocar arrependimento. Era necessário ir preso para que se desse a catarse necessária para uma reabilitação desejada, mas sem fazer o mais pequeno esforço para alcançar paz e amor sem as costumeiras ameaças de cobrança.

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