segunda-feira, 3 de maio de 2010

012 uma infância doente

Podia escapar-se para aqueles contos fantásticos que povoavam a imaginação de alguns escritores ou simplesmente enredar-se no exército de micróbios que o atacaram na sua infância.

Não é que as coisas tivessem um rumo grave, mas as moléstias daquelas doenças infantis que faziam grávidas fugir em estações de comboios apinhadas, deixaram as suas sequelas na vontade de faltar ao trabalho, já depois de adulto. Trabalho sempre remunerado, utilizando as adversidades como uma terapia de onde se extraíam os podres da sua existência, por vezes vergonhosamente amorfa.

No rádio escutava as notícias da gripe do momento, os conselhos do especialista convidado, seguindo-se a visita ao pediatra, careca natural, com uns óculos daqueles ultra-graduados, sempre com a pose afectada de comerciante sem escrúpulos escondida numa ainda menos natural capa de cordeiro algo dura, quando a realidade prenunciava mais e mais tempestade.

A questão que se punha nos tempos de infância não se devia resumir à bomba de oxigénio que lhe foi posta no hospital, onde as baratas faziam de melhores amigas. 

Causando confusão o seu cabelo louro e ondulado, alguém o raptou, embora as memórias se resumam a um pão com manteiga e um vão de escadas de um prédio nos subúrbios da capital, ainda pouco habituada aos brutais engarrafamentos dos acessos à ponte dos cravos e do fascista. 

Sim, era-lhe permitido ter memórias apesar de escassas as sementes fecundadoras, talvez de desejo, seguramente de um vazio preenchido pelas vãs propostas dos subliminaristas do sistema, detentores de uma profissão que jamais sucumbirá a qualquer crise, com a natural excepção do período em que o Sol se começar a expandir.

Quem pense que a sua vida triste não era a espaços injectada de um qualquer ânimo vindo não se sabe bem de onde, só pode ser ele próprio um natural equívoco da natureza, da qual se alimentam os donos das consciências, naturalmente, predestinadas.

Pudesse ele escolher e decerto que a infância seria dotada de outras nuances, porventura mais ocas, assimilando melhor a capacidade incrível que nasce com alguns de aceitar essa finitude de que também é dotada a alma humana. Jamais se pense que todas as almas são eternas. Assim o pensava, na sua angústia e inquietação, como que a pedir que, quando crescesse, não tivesse a estranha sensação de estar sempre a passar pelos mesmos momentos de solidão, obtusas incompreensões embutidas numa rotina que talvez interessasse a um corpo morto, acrescentando o cheiro fétido da decomposição.

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