quarta-feira, 5 de maio de 2010

014 lugar de desespero

Porém esse menino não era de todo provável que fosse seu filho, podendo ser mais uma das eternas chantagens de uma das mulheres que ele tratara como mero objecto sexual. Não que agora fosse alguém conhecido e tentasse tirar partido disso mas tão somente fazê-lo acreditar na tese da bruxaria que o puxava para o fundo de um poço de infinita amargura.

Era neste lugar de desespero que costumava deitar-se quando a obsessão pelas cortinas vermelhas atingiu o seu auge. Depois aparecia a filha mais pequena da namorada e com um mero sorriso conseguia fechar aquele compartimento negro que crescia dia após dia. Mesmo não sendo sua filha adoptou-a espiritualmente sabendo perfeitamente os riscos que podiam advir dessa atitude.

Entretanto a noite caía e uma longa caminhada fê-lo embrenhar-se numa floresta onde tudo lhe parecia conhecido, pelo que avançava com cuidado para que os ramos cansados de uma qualquer árvore envelhecida não lhe trespassassem o corpo, que tanto ansiava morto como a vibrar da vida que tentava incutir a si próprio.

Parou e resolveu nem olhar para trás. Os olhos marejaram-se das lágrimas perdidas em abismos passados e um medo inexplicável bloqueou-lhe o movimento dos braços e das pernas, como se o seu Apocalipse estivesse prestes a acontecer. Mas voltou a fechar os olhos voltando ao centro da cidade, perto da casa daquele homossexual que lhe difamou a honra com mentiras inimagináveis. Pensava que o mundo seria bem mais saudável sem a presença desse intriguista de meia tigela.

Nunca conseguiria deixar de se sentir um estrangeiro, mesmo quando se sentava procurando um qualquer sentido para os seus sonhos que decerto seriam melhor definidos como pesadelos. Alucinado ou não conseguia adaptar-se à luz e às trevas, mas a vida ia-se tornando uma doença sem cura para além da morte e por isso ia evitando o sorriso de circunstância, como se o ar sério que lhe habitava o rosto fosse uma espécie de auto-velório nunca desvendando os desejos quase amargurados de vida e compaixão por quem necessita, seja pobre, ou no mínimo, agente activo de uma conspiração em que apenas é permitido viver e ser feliz.

Já não lhe preocupava a solidão, a afectação e as formas de a ultrapassar passavam a ser a parte principal das questão. Nem assim conseguia explicar porque tinha amor por quem quer que fosse, quando a vontade de renovação se entranhava e passava a fazer parte do corpo.

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