quinta-feira, 20 de maio de 2010

018 solidão primitiva

Em dias normais o corpo pedia para dormir, só que já eram raros os dias em que a cabeça distinguia o que era normal da sucessão de planos disparatados que pouco ou nada acrescentavam ao seu conhecimento. Sempre ouvira dizer que o corpo humano pede movimento, que foi feito para agir e comunicar com outros corpos humanos, porém o assunto premente era descobrir o porquê da eterna insatisfação com o curso da vida, algo que resolvia isolando-se e mostrando uma má cara, angustiante para quem o rodeava. Era possível que essa solidão fosse algo de primitivo, que pertencesse à sua alma, entre cada encarnação.

Já passava muito da meia-noite e as cervejas que bebera muitas angústias delapidaram. Enquanto isso o pé direito carregava a fundo no acelerador sem sequer se preocupar com o nível de alcoolemia. A seu lado a namorada de curta data cantava-lhe algo de uma canção de amor igual a tantas outras e afinal chegava sempre à conclusão que todos os homens são iguais e que a fortuna de ter uma vagina se resumia aos orgasmos múltiplos, aos filhos e a dançar, todas as outras coisas eram puro castigo para a mulher. Depois chorava, enquanto urinava o produto da sua bebedeira juntos dos Paços do Concelho, apoiada no braço direito dele. Claro que este era um momento raro em que o seu coração dilacerado se opunha à triste constatação de ter sido usada por um homem que amara sem qualquer tipo de condições, apenas amor incondicional, cuja paga fora o desprezo e a violência.

E ao longe havia sempre uma Operação STOP em que a polícia pedia a carta de condução e que se soprasse no balão. Eram momentos de emoção, o que revelava bem o seu estado depressivo e a dificuldade que tinha de fazer das noites um momento de prazer, já que os dias eram negros, apesar do Sol, sem condimento apesar das comidas elaboradas que ela fazia para todos.

Os pesadelos, cada vez mais absurdos, sucediam-se vertiginosamente e nem o facto de ter a possibilidade de se saciar sexualmente como mandam as regras heterossexuais, o acalmava. Isso punha-o triste, com a falta de sentido que a vida tinha assim, tudo oco, algo que o perseguia incessantemente como se fosse o derradeiro dos Oásis onde pudesse deixar esquecida a solidão.

Quando as noites estavam quase no fim e a ressaca começava a ter os seus efeitos deitava-se quase sempre sem vontade de foder, como se o caminho para outra dimensão fosse a meta desejada.

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