terça-feira, 8 de março de 2011

059 inclinado sobre as sepulturas

Não se viam os rostos, o caixão era negro e as lágrimas não se manifestavam nos presentes. Seguiu esse cortejo dentro da própria cidade. O silêncio absoluto fê-lo estremecer, mas nem por isso esmorecer. Os que iam no cortejo sabiam quem ele era envolvendo-o no seu manto negro de nada, sem alma, vidas entregues ao vazio emocional mas lúcidas o suficiente para se dirigirem às suas próprias sepulturas onde descansariam pela eternidade.

Não se deixou levar pelo medo da escuridão, apenas seguiu o caminho que lhe estava destinado. Foi uma longa viagem e pelo ruído que se percebia que vinha uma gigantesca multidão atrás. Cantavam em uníssono aquilo que parecia ser a invocação de alguma entidade, restava saber se benéfica ou maléfica. Sentiu-se desconfortável, sobretudo quando pararam e se afastaram, deixando o dia a descoberto e as sepulturas que queriam que ele visse.

Respirou fundo, lembrando-se que algo estaria profundamente errado para ter que presenciar todo o mal do Inferno, como se do Céu nada pudesse vir sem dor ou concessões em excesso.
Nenhuma novidade no horizonte, apenas uma campa com um menino lá dentro.

De repente, como quase sempre, ficou sozinho, apenas com aquela sepultura sinistra a abrir-se, saindo lá de dentro um menino vestido de branco, com os olhos raiados de sangue. Tocou-lhe ao de leve e a ira tomou conta dele.

Em poucos segundos ficou literalmente a sós. Apenas se ouviam os pássaros que esvoaçavam por ali. Começou a andar. Cada passo substituía no solo a terra por alcatrão. 

Olhou para trás e tudo estava negro. Virou-se de novo e assustou-se com um homem feio que se especou à sua frente. De estatura média, cerca de um metro e setenta, com uma barriguita a caminhar para o grande e vestido de forma desportiva, o cabelo oleoso acentuava a sua fealdade. ria-se mostrando os seus dentes sujos do excesso de tabaco. Propôs-lhe um negócio irrecusável, algo que abalaria os sete demónios que haviam entrado dentro de si e provocariam a ira de Deus, que lançaria os arcanjos em missão celestial para os exterminar. Só que ninguém tinha a possibilidade de descobrir a verdadeira essência da proposta sem que fosse derramado muito sangue inocente e nenhum arcanjo o podia fazer sem a autorização do Pai supremo de todas as forças por armar.

Após escutar a proposta e se decidir a aceitá-la o homem desapareceu tão misteriosamente como tinha aparecido. Deu-se então conta que era o líder da facção alternativa ao Céu e Inferno, o fundador da  Sagrada Loucura que urgia encher-se de abnegados peregrinos que pusessem um fim às guerras surdas travadas entre os exércitos de Deus e Lúcifer.

Por breves instantes deu-se conta que nunca lhe seria possível ceder às pulsões suicidárias que o afligiam.

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