domingo, 20 de maio de 2012

134 no fervor da prece


O começo de um novo dia deu-se da habitual forma inexplicável. Mais uma vez tudo normal, como se o acidental, fenómeno de pôr a boca aberta, fosse o trivial.

Para poder colocar as pedras no seu devido sítio tinha que, naturalmente, cortar radicalmente com o passado.

Uma das pontas, que levava a um labirinto sem fim, estava prestes a ter solução. Pelo menos aos olhos de Deus, não teria mais essa imagem de herege a caminho da fogueira, por mais actos reconciliatórios com a vida harmoniosa que praticasse. Claro que aos olhos de Lúcifer, uma vez pecador, para sempre pecador, sendo essa condição devidamente estimulada por um demónio.

Conheceu alguém que lhe rezou uma prece sem que ele o pedisse. Que lhe desejou vida feliz sem que ele lhe desse algo. Que não prometeu um mundo perfeito apenas para lhe extorquir dinheiro. Tornou-se uma espécie de imortal, mesmo com um coração enrugado, das alegrias e das dores, das fantasias e das azias, dos amores e esquenta dores. Não podia alimentar-se da perfeição, apenas da saudável loucura, nem que para isso tivesse que viver na provocação do pecado. Afinal conseguira visualizar um mundo onde era natural pecar sem ser confundido com um qualquer nazi e tratado como lixo ou Infinita Sua Reverência. Para alcançar o que queria já não precisava de abrir e fechar os olhos, de procurar apoio, de retemperar forças para entrar em lutas fratricidas. No dia em que se apercebeu disso o mundo foi sacudido com um violento estremeção. Algo mais duro que um Apocalipse, mais frutuoso que o ventre de muitas mães juntas.
No fervor dos pedidos por uma vida melhor as pessoas esqueciam-se das dores no coração, farto de bater por quem maltratava tanto o corpo onde batia, impedindo indefinidamente a morte. E depois caíam como tordos. Começavam a escassear almas para tantos mortos, contexto para se inserirem em outros tantos vivos que não conseguiam sequer saber o porquê de chamarem milagre a um mero acontecimento facilmente explicado por um qualquer arremedo de cientista.

No fervor da imaginação qualquer presságio que tomasse a forma de uma auréola era o sinal da presença inequívoca de Deus. E este tranquilizava-se na Sua omnipotência, adiando o ajuste de contas com quem queria viver no Seu Reino, sem ser do seu círculo de amizades.

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