O começo de um novo dia deu-se da
habitual forma inexplicável. Mais uma vez tudo normal, como se o acidental,
fenómeno de pôr a boca aberta, fosse o trivial.
Para poder colocar as pedras no
seu devido sítio tinha que, naturalmente, cortar radicalmente com o passado.
Uma das pontas, que levava a um
labirinto sem fim, estava prestes a ter solução. Pelo menos aos olhos de Deus,
não teria mais essa imagem de herege a caminho da fogueira, por mais actos
reconciliatórios com a vida harmoniosa que praticasse. Claro que aos olhos de
Lúcifer, uma vez pecador, para sempre pecador, sendo essa condição devidamente
estimulada por um demónio.
Conheceu alguém que lhe rezou uma
prece sem que ele o pedisse. Que lhe desejou vida feliz sem que ele lhe desse
algo. Que não prometeu um mundo perfeito apenas para lhe extorquir dinheiro.
Tornou-se uma espécie de imortal, mesmo com um coração enrugado, das alegrias e
das dores, das fantasias e das azias, dos amores e esquenta dores. Não podia
alimentar-se da perfeição, apenas da saudável loucura, nem que para isso
tivesse que viver na provocação do pecado. Afinal conseguira visualizar um
mundo onde era natural pecar sem ser confundido com um qualquer nazi e tratado
como lixo ou Infinita Sua Reverência. Para alcançar o que queria já não
precisava de abrir e fechar os olhos, de procurar apoio, de retemperar forças
para entrar em lutas fratricidas. No dia em que se apercebeu disso o mundo foi sacudido
com um violento estremeção. Algo mais duro que um Apocalipse, mais frutuoso que
o ventre de muitas mães juntas.
No fervor dos pedidos por uma
vida melhor as pessoas esqueciam-se das dores no coração, farto de bater por
quem maltratava tanto o corpo onde batia, impedindo indefinidamente a morte. E
depois caíam como tordos. Começavam a escassear almas para tantos mortos,
contexto para se inserirem em outros tantos vivos que não conseguiam sequer
saber o porquê de chamarem milagre a um mero acontecimento facilmente explicado
por um qualquer arremedo de cientista.
No fervor da imaginação qualquer
presságio que tomasse a forma de uma auréola era o sinal da presença inequívoca
de Deus. E este tranquilizava-se na Sua omnipotência, adiando o ajuste de contas
com quem queria viver no Seu Reino, sem ser do seu círculo de amizades.
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