sexta-feira, 3 de setembro de 2010

036 este corpo em decomposição

Porém algo mais profundo se passava no cemitério de uma pequena cidade no nordeste de Espanha. O caminho era feito sempre em subida íngreme sendo os esquilos, habitantes dos pinheiros a salvo de incêndios, presença assídua na vigília dos que pudessem perturbar a natural decomposição de seres feitos para ninguém mais se lembrar deles.

Era usual ver-se caravanas de almas em sofrimento pela perda de algum corpo querido e escutar-se os esquilos de olhos bem abertos a perscrutar tudo com a máxima atenção. Chegados lá acima, do lado direito, havia uma porção relativamente grande de ervas daninhas que destoavam da paisagem geral. Mas foi durante o silêncio sepulcral da noite que se deu um fenómeno bizarro que provocou a morte de quase todos os esquilos. Para quem tivesse poderes extra-sensoriais era fácil adivinhar a presença de um qualquer demónio. Assim foi e era o tempo de Mortuivel se manifestar, renascendo por meio da fraqueza dos vivos perante almas em transição.

De início não se deu pela falta dos pequenos animais, a fonte de equilíbrio entre as almas que ainda podiam ser purificadas e as danadas pela eternidade, por natureza corrompíveis sempre que alguma situação o justificasse.

Sendo um caso único em que se dava a guarda do portal das almas em transição a pequenos animais como esquilo, tornava-se estranha a intromissão de Mortuivel, causando o caos sem que as forças opostas, devidamente avisadas, fizessem algo que impedisse o crescimento desta força destruidora invisível..

Ao primeiro raio de Sol estava preparado para receber o seu primeiro hospedeiro, sendo a alma do coveiro a eleita. Sendo um senhor de provecta idade, era casado com uma professora reformada, mas ainda influente no pequeno meio em que vivia o que lhe agradou ainda mais.

Mortuivel passou rapidamente a sua energia negra e destrutiva para a dita senhora que mantinha uma amizade intima com a sogra do presidente da câmara. A dita amiga mantinha uma escaldante relação sexual com o genro, sendo a forma perfeita de atingir os fins a que estava destinado por Lúcifer. 

A primeira medida a ser aprovada seria um projecto-lei em que ficasse estabelecida a expulsão imediata de todos os estrangeiros sem situação legalizada. Tal medida foi aprovada em tempo recorde, provocando uma onda de indignação em todo o país, passando a especular-se sobre os motivos profundamente racistas da mesma. O facto de a repressão recair sobre quinze mil muçulmanos provocou uma onda de atentados que lançou o caos na comunidade há longo tempo a reclamar a independência. O sangue jorrava de novo e em abundância, provocando divisões irreconciliáveis entre defensores de direitos humanos e nacionalistas radicais.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

035 ao fim da tarde

Os dias bucólicos, em que a presença de familiares distantes se tornava como que o acontecimento do século, eram cada vez mais escassos, possivelmente fruto do mau feitio do anfitrião que arranjava sempre um pretexto para provocar desgostos na assistência, que cedo se arrependia da presença planeada com tanto afinco pelo desestabilizador.

No meio desse vendaval de desistências, notou-se uma presença tardia, porém assídua, como se entendesse que tudo devia ser redigido segundo as leis antigas da fraternidade, nem que para isso tivesse que matar, tornando-se um pária.

A viagem passava a ser feita numa carruagem estranhamente limpa, como se o mundo se resumisse a um amontoado de corredores e assentos que, devidamente utilizados, levavam o passageiro pela quinta dimensão dos prazeres carnais, seguido das profundezas do Inferno, indevidamente conquistadas pela sedução de um anjo perdido de nome Ervidel, que de tanto ser torturado se esqueceu da missão divina e se transformou num demónio.

Rezava a lenda que os seus poderes se libertariam ao fim de uma tarde, imediatamente depois do solstício de Inverno, notando-se a sua presença física junto de árvores centenárias. Foi assim que saiu o primeiro demónio da sombra, rebentando com uma mala perdida num aeroporto, que viajara por caminhos obscuros e mãos invisíveis até cair esquecida num aglomerado populacional cuja fonte de rendimentos maior era um abeto de doze metros de altura. Ervidel apenas teve de esperar pela passagem de um ser vivo, em condições, para se materializar. Para ajudar provocou um apagão geral na zona, que atraiu para lá alguns meliantes, piquetes da companhia de electricidade e alguns polícias, tudo gente sem a mais pequena importância. Teve de esperar algumas horas até aparecer uma jornalista que possuiu no momento em que ela tocou na mala. A partir desse momento poderia mudar de hospedeiro sempre que se justificasse e não houvessem perdas de energia desnecessárias, mas deixou-se ficar naquele corpo interessante.

A sua primeira missão foi reeducar a sua hospedeira de maneira a poder extrair-lhe todas as potencialidades.

A cidade entrou em pânico com o aparecimento de algumas pessoas horrivelmente mutiladas. Em cada bairro que passava deixava o caos instalado. O seu poder aumentava de forma brutal à medida que possuía as almas dos inúteis que liquidava e o seu maior poder começou a tomar dimensão: a invisibilidade. Mas isso tinha as suas desvantagens, para manter a invisibilidade dentro de um corpo humano tinha que extrair todo o sangue de outro a cada hora que passava, quando não o fazia o corpo possuído tornava-se zombie e tinha que procurar outro hospedeiro.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

034 pouco antes da minha morte

Todo o poder conhecido pelo ser humano era insuficiente para combater a perfídia subjacente aos planos metodicamente delineados, em tempos imemoriais, que estavam prestes a ver a luz do dia. Os sete demónios libertados pelo nascimento do ser número seis biliões e dezassete mil partiriam em busca do cofre dos enigmas dourados, de paradeiro incerto. Essa circunstância levaria ao agudizar das relações entre as principais potências mundiais provocando o puro caos.

Como sempre os loucos, devidamente vigiados, previram todos os passos, inadmissíveis aos olhos do mero mortal, lei absoluta dos líderes das nações mais importantes. Todavia seria impensável que, pouco antes de muitas mortes, fosse revelado o tenebroso segredo que levantaria o pai do anjo Lúcifer das trevas rumo à luz em que residiam os piores pesadelos suportados pelo mero mortal. Nada podia prever a necessidade de invocar o espírito de algum imperador romano de forma a educar o povo e a esterilizar o poder maligno que se fortalecia de segundo para segundo.

Tudo estava previsto e, ultrapassando o elemento surpresa, o mal venceria em toda a sua extensão.

O som era cada vez mais alto, provocando surdez temporária nos eleitos para combater o mal anunciado, por isso se tornava mais fácil comandar as tropas rumo a uma escuridão confundida com um qualquer paraíso supra-terreno.

As pessoas manifestavam a sua alegria lançando-se num abismo inesperado, apenas por não terem paciência para esperar pelo momento adequado de conquistar a nobre função, pela qual vinha a ser conhecido o desejo de ser feliz. Essa função consistia no abandono a leis divinas comprovadas por palavras escritas por entidades desconhecidas às quais, num gesto raro de união, se decidiu dar o nome de Deus.

Pouco antes de todas as mortes a entidade era invocada e, uma qualquer forma de liquidar a existência, activada. Isto permitia a aproximação dos demónios entre si, uma vez que estava previsto nada os poder deter. Nesta altura o silêncio tomava o lugar da tenebrosa sensação de ruído elevado à máxima potência sem que nada pudesse ser feito para o parar.

Se o desejo fosse o de fechar os olhos então buscaria de novo a cortina vermelha onde se encontravam as respostas a todos os enigmas.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

033 as viagens sem chegada

Porém o desejo de transgressão evoluía muito para além da simples aritmética originada das falsificações por si perpetradas, como se não tivesse medo de ser apanhado e conotado com alguma minoria sempre presente nos manuais de bem roubar sem depressa ser apanhado.

Eram puros delírios os momentos em que se dedicara a cozinhar uma vida simples contemplada no final com um  caixão sem qualquer motivo indicador de glória ou regresso à vida. Tratavam-se de viagens sem chegada, em que a vida se transformava num joguete em que eram descurados cuidados primários como evitar aquelas doenças das estatísticas. Apetecia corromper aquele desejo de nada, e era fácil quando alguém lhe manifestava a beleza da vida, tornava-se então evidente que tinha que adiar esse momento radical, que seguramente mudaria todas a relações que mantinha por esse mundo fora.

A porta da rua estava frequentemente aberta e com rara estranheza não lhe roubavam nada, nem sequer lhe destruíam a harmonia caótica com que sobrevivia aos dias mais cinzentos que lhe trespassavam os olhos em direcção à alma.

Ao mesmo tempo o telefone não parava de tocar, chovendo os convites de naturezas opostas apesar da característica única que os acompanhava, uma viagem sem regresso à monotonia anterior. Claro que a sua frontalidade facilmente desmoralizava qualquer tentativa de reaproximação ao objectivo final. Ainda assim dava resposta positiva aos que tinham a paciência de pedir uma segunda vez. 

Foi num desses encontros triviais que tomou conhecimento com uma vida alterada por circunstâncias algo caricatas. Cedo se interessou pela possível desgraça, mas igualmente tornou-se um aluno notável em técnicas de venda de almas, sem que a vítima sentisse sequer ter capacidade de contrariar essa cabala movida pela pura maldade.

O resultado final levou à aproximação de demónios relativamente poderosos, das suas imensas aptidões como pirata de almas absolutamente virgens da maldade que permitia alimentar-lhes o poder, transformando-as em aprendizes de demónio, sofrendo as mais atrozes torturas que, segundo a hipotética lenda, podiam levar à dor eterna, sem que fosse permitida qualquer intervenção apaziguadora.

domingo, 15 de agosto de 2010

032 os teus lugares

Porém o desejo de viver algo mais terreno era mais forte que qualquer sonho baseado nas premissas dos quadros de Dali pelo que a conta da farmácia ou do traficante de uma esquina perto de si, era um perfeito disparate que amotinava a concretização das tarefas mais simples, tornando-as tão ou mais utópicas que as ditas irrealizáveis.

Lembrava-se do pessegueiro e do limoeiro em frente a um alpendre, a perfeição para a fuga à cidade. Olhando em frente via o vale verdejante que se estendia até ser interrompido pelo céu, o que lhe recordava um filme de John Ford que queria estrear na sua sala privativa de cinema quando tivesse dinheiro para tal. Não sendo impossível de alcançar abandonou facilmente a ideia  quando a alma urbana se interpôs aos desejos puros do coração dilacerado.

Foi sempre em busca de uma nova história para se agarrar de novo à vida, como se o coração tivesse vontade e alma própria, asilando-se do seu corpo pela eternidade. Felizmente também se dava conta que algumas lágrimas derramadas em silêncio lhe eram dirigidas, adiando a inevitável conclusão para algo natural e imprevisível.

Entretanto tornava-se urgente viajar no tempo, de maneira a compreender os fantasmas que se iam amontoando em cada lugar que passava.

O vale era substituído por uma paisagem de betão e o alpendre de vistas magnificas por uma secretária equipada com computador e papeis vindos das profundezas de um inferno que se constituía como a superfície visível daquilo que lhe diziam ser uma vida segura. Os olhos pesavam facilmente e as mentiras constantes que o rodeavam apenas provocavam um vazio total apenas passível de ser preenchido com golfadas violentas de álcool. Quando o concretizava apenas lhe provocava mais mal-estar, despertando noutro lugar e na única e indesejável companhia de uma ressaca, seguida de um telefonema de alguém preocupado com a sua saúde, algo que na realidade lhe era indiferente.

Ao fechar de novo os olhos abriam-se as perspectivas de sempre, quer em forma de pesadelo ou de uma qualquer sessão de amor com uma desconhecida, que apenas lhe acentuavam a vontade de fugir, sobretudo dos medíocres momentos de fugaz segurança que lhe davam um trabalho que apenas lhe motivava o desejo de acelerar o suicídio.

sábado, 7 de agosto de 2010

031 imensas revoluções

Queria ter a coragem necessária para mergulhar num lago infestado de crocodilos e saber se sairia de lá vivo sem qualquer arranhão. Este como outros pressupostos levariam a que facilmente o acusassem de uma qualquer doença mental, necessitando de medicação contínua e possivelmente sendo abandonado pela família quando se tornasse um estorvo financeiro.

Porém, a idiotice e os actos tresloucados guardava-os para as imensas revoluções que tinha previsto colocar em prática. Isso excitava-o mais do que largar o sémen dentro da mais bela e carnuda mulher. Se tudo era efémero, decerto que a possibilidade de mudar o mundo ainda o era mais que foder até o sexo ficar em ferida.

Vivia na montanha de onde podia ver as casas a picar todo o chão disponível, sugando toda a espécie de energia que pudesse envolver os terrenos dessacralizados. Bebia dessa vontade de sonhar a criação, aliviando a tensão assassina que crescia desalmadamente dentro de si, através da execução de pequenas tarefas que punham a polícia em alvoroço, o ministro sem saber muito bem o que fazer, o povo sem tomar banho em Agosto. Ainda assim tinha tempo para se enfrascar com uma qualquer cerveja certificada como melhor do mundo. Consta mesmo que o chefe da equipa de investigação era o seu melhor amigo, o qual se gabava insistentemente que iria resolver este caso em tempo recorde, sendo promovido a uma qualquer patente que o tornasse intocável, ou seja, tornar-se-ia um corruptor inalcançável.

Tudo era fruto das condições abjectas a que havia chegado um país onde os principais cérebros se tornaram terroristas sanguinários, sem que houvesse alguém que fosse abertamente contra isso, a trivial apatia que nem obra do diabo era. E voltava a pensar nas suas revoluções, no extermínio da santa estupidez e sem que tivesse decidido converter-se ao satanismo que proclamava este defeito como o pior de todos eles.

Em dias de calor intenso mais pareciam serem os mosquitos os revolucionários atacando cada humano de sangue mais doce com as suas infectas picadas e que só a estes afligiam. Era certo que qualquer mosquitocídio seria sempre uma boa notícia, quer para os humanos, quer para os que pudessem visitar a Terra em investigações secretas. Talvez fosse a hora de algum empresário do ramo farmacêutico se queixar do fim da principal fonte de transmissão da malária e promovesse o lançamento de uma nova bomba atómica para saciar a sua raiva.

prólogo

Arturo e Flor, desta vez não se seguirá a normal história de amor e os vícios escaldantes de relações que acabam em visitas ao consultório de algum psiquiatra psicopata. Nem sequer se mencionam os nomes, essa coisa fica para depois.


Anjos nem vê-los, apenas os sete diabos que entram dentro de um peregrino louco que confunde sonhos com realidade. 


E o pior é que a salvação do mundo antes anunciada nem sequer é do lado do bem, muito menos do mal, apenas umas valentes dores de corno afectam o Paraíso e o Inferno e o fulano a que se ousa chamar herói um mero corruptor de almas e conceitos...