sábado, 24 de dezembro de 2011

126 o amor estrangeiro


Simplificando a coisa podia-se ter evitado uma carga de trabalhos. A vida não podia ser uma leva de coisas eivadas de perfeição. Nem teria interesse, nem seria emotiva o suficiente.

Das banalidades recorrentes sentia falta da selvajaria carnal, apesar de isso o afectar cada vez menos. O cheiro de Flor fazia-lhe mais falta que salvar a merda do mundo. Fossem num foguetão visitar o desejo de simplicidade dos superiores de espírito e talvez as cíclicas transformações operadas em tudo o que se movia à face de qualquer terra passassem a ter hora marcada. Mas sem dinheiro, apenas com imaginação pouco mais era possível que apelar ao bom senso e a todas as energias positivas para arranjar um sorriso. Esse era o trunfo de Flor e ainda mais das quatro magníficas cavaleiras do Pipocalipse escondido atrás do Arco-Íris e que não era nada mais que uma pupila de um anjo adormecido por uma cápsula de veneno tsé-tsé enviado pela armada celestial para que ele não alegrasse assim tanto as pessoas.

Arturo já se havia dado conta disso tudo, o normal e as constantes viagens entre dimensões de uma mesma vida que não iriam resolver nada, apenas o colocariam num incómodo colete-de-forças e o encerrariam numa ala perdida de um Hospital onde se fariam experiências sexuais macabras e as almas vagueariam danadas para aterrorizar quem lhes perturbasse a maldição entranhada.

Sabia que podia ser esse o seu futuro, mas resolveu dar mais atenção às mulheres que lhe davam todo o seu sentido de viver. Elas eram devidamente protegidas pelo anjo falsamente adormecido, sem que nunca se houvessem dado conta disso.

As falinhas mansas eram ignoradas. Não era preciso falar para entender o que as pessoas queriam, o que podiam fazer e para que serviam. Por vezes conseguiam ser de tal maneira ineptas para o simples acto de respirar que angustiavam o mais paciente dos peregrinos e Arturo deixara de ter paciência para gente bacoca.

Fez por esquecer-se dos problemas que o afastavam de Flor e concentrou-se nas possibilidades de poder juntar-se a ela sem ter que mudar de dimensão.

Já não era preciso fechar os olhos para sentir o mundo que queria, mas tê-la era como se fosse uma penitência sem fim, e o fim era algo para o que não tinha tempo.

No Além todos ficaram subitamente sérios e foi, por momentos, impossível pôr em prática qualquer praga contra a humanidade.

125 o tempo dos livros


As manhãs sempre foram algo complicadas, fosse no ar ou no chão, com os amigos ou os ratos do porão. Custava-lhe a abrir a mente para mais do mesmo, quando o Universo era quase infinito e o mundo estava quase a acabar sem que sequer uma ínfima parte dele conhecesse.

Nascido num país de fatalismos exacerbados e baixas por natureza, desencantava-lhe o fado. Aproximava-se mais dos livros e da natureza por eles exalada. Eram os poemas e as histórias fantásticas dos sem-medo que já não existiam, as declamações vibrantes de pessoas que depois se espalhavam ao comprido nas suas opções políticas e um verso sobre janelas de alumínio que o havia feito entrar no mundo ainda mais desencantado de um poeta que usava óculos. Nada de novo, tanta gente usava óculos e era estranha, mas estranho e estranheza maior era o facto de esses tempos de utópica liberdade serem o da disseminação dos livros, dos corruptos e da mentira como escola de vida. Fulminava essa escumalha com os olhos.

Possuídos que estavam por demónios em profusão renasciam com o mesmo aspecto, faziam as mesmas parvoíces e na altura da ajuda ao povo roubado eram considerados habitantes de um país menor que merecia desparecer do mapa. De acordo, pensava Arturo, que nesse cu de uma Europa onde até o seu nome era estrangeiro, assistia à vassalagem surreal dos honestos contra os agiotas.

Então para quê ajudar os outros quando nos esquecemos de o fazer a nós próprios? E pensava ainda mais, que o seu povo devia legislar algo acerca disso, cagar-se para os filhos da puta mandantes da miséria em que transformavam a vida daqueles que eram penalizados a todo o instante com as suas opções egoístas! E acima de tudo lembrar-se que ajudava sempre os outros!Sem dúvida que no pedaço de cu da Europa onde toda a merda saía, os cheiros nauseabundos que vinham desses antros de ingratos era sempre recebido com um sorriso injusto. Quando é que iam parar com essa proverbial simpatia? Para quando proibir a entrada desses senhores que, vivendo numa economia comum, tinham sempre opções particulares? Como peregrino da sagrada loucura tinha o poder de exterminá-los e a seu tempo divertir-se-ia com isso. O Campo Pequeno faria jus ao seu nome com tanto aborto enfiado lá dentro para ser devidamente castigado pela sua incurável imbecilidade.

Entretanto lia algo acerca da segunda guerra mundial do século XX. Fechou os olhos. Quando os reabriu sentiu os orgasmos selvagens de Flor a fluírem de encontro ao seu corpo!

124 do homem e das coisas


A música continuava. Apesar dessas intensas melodias há muito tempo que se dedicava a encontrar o silêncio perfeito. Ela podia vir dos gemidos de Flor enquanto faziam amor ou ainda do famoso bater de asas de uma borboleta que depois podia provocar um terramoto. Contraditório? Claro que sim, nem de outra forma podia ser, porque o silêncio absoluto só estava no desconhecido e possivelmente mesmo ele estava prestes a deixar de o ser.

A sua cara, a cada dia menos disponível para os sorrisos de pacotilha, contorcia-se em risadas teatrais de coisas que até tinham piada mesmo que depois nem retirasse qualquer tipo de sumo útil para a sua sobrevivência.

Era parte do seu ser de pés assentes no chão encontrar a melhor maneira de se libertar do jugo tirano da estupidez entranhada nos outros, incentivada como coisa normal por eles, depois feita lei por seres que já haviam sido promovidos a algo pior e mais perigoso que obtuso.

Lembrava-se da porta que chacinada em pleno verso, com uma rima em riste pelo cu acima, solução que sempre arranjava na outra dimensão quando concluía que algo devia desaparecer do mapa.

Do homem tinha muito que dizer, nem sempre lhe agradava saber do Apocalipse para alguns se verem livres dos dispensáveis, mas das pequenas coisas quotidianas sentia sempre mais a falta. Não pode deixar de aplaudir a criação de mecanismos de defesa da Mãe Natureza por estados ditos inferiores. Sentiu força e vida nesses estímulos e mudou a sua forma de agir perante a aridez de ideias das pessoas que nunca tinham tempo para nada, que nem se lhe dirigiam como se ele fosse um ser normal.

Às vezes ia de propósito para a beira de um qualquer abismo e nunca tinha a coragem de rebelar-se contra o seu destino. Do outro lado anjos e demónios dançavam entrelaçados sem acentuar as diferenças irreconciliáveis. Era-lhes indiferente o destino dos homens modernos, apenas queriam divertir-se destruindo tudo, pondo tudo contra todos, culpando a inteligência de uns pelo fracasso de quase todos.

Os dias eram duros apesar de ter tudo, os pecados chegavam-lhe com a urgência com que necessitava de oxigénio e nada disso era compensado com qualquer um dos poderes revelados.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

123 o exercício do amor


Sempre as mesmas pessoas, poses e finalidades. Já todos sabiam quem mandava, já todos tinham a consciência que nada podia mudar sem uma adequada conjugação de esforços.

Um dia, em plena Primavera, numa cidade feia, de obtusas construções e aniquiladas aspirações passou-lhe a vontade de atravessar a montanha, de voar até às paredes que antecediam o Infinito e ainda de zelar pela vontade própria de cada um. Via-se como um embuste, quase apátrida, rodeado por uma imensa minoria de iluminados que talvez nem se dessem conta da bravura presente em cada expiração que faziam e que contagiava os demais.

Dos peregrinos, nem sombra, apenas Flor e sua banda colorida de jovens sempre de bem com a vida lhe restavam no horizonte. Claro que o rescaldo não se podia limitar a elas, outros mais entranhavam-se no desejo de construir um castelo sem quartos a mais, uma vida de opulento amor sem que a vista se ofuscasse com desejos fúteis.

Assim tudo era mais difícil, a solidão acercar-se-ia com mais violência e podia ser o que restava no final de cada dia, aumentando esse desespero egoísta até aos antigos desejos de suicídio.

Não dormia bem, o amor nem sequer era platónico, os sorrisos mecanizados e ainda por cima dava graças a Deus por trabalhar na casa de Lúcifer. As ironias eram sujas e a decisão que tomara de parar de fugir podia voltar-se contra si se não soubesse gerir o tempo que lhe restava.

Uma melodia pouco dada a inovação entrava-lhe directamente no cérebro cansado, ela falava de não saber o que era o amor antes de te conhecer, em tom jocoso sem alcançar a via do sorriso multicolorido. Sem ser dado a passos de simples dança, movia as articulações gastas de tanto estalido que lhes oferecia e o amor continuava a ser algo distante, apenas alcançável fechando os olhos para os abrir junto de uma majestosa mulher que combatia as pérfidas tropas do comodismo, da entrega a um destino sem brilho e sem alívio nos sacrifícios.

A vida fugia entre cada movimento respiratório, soubesse ou não o que era o amor antes de a ter conhecido. Mudou então de ideias sem se preocupar com o que pudessem pensar dele.

122 a vigília do sonhador


Queria apenas a eternidade, asas sem cera nem idade. A bravura de um gavião e apenas se contentava com o nada e sem satisfação.

Infinita tristeza a da manhã perdida, dos desenganos e torpores malignos, olhares vazios em rios secos de vontade. Encostar-se sim, mas a quê? Porque entraria assim dentro dela, em cruzadas de silêncio pouco inocente para emprestar algum refúgio lúgubre e aninhar os sentidos envelhecidos no cansaço sem a braços ou demonização.

Queria apenas a vontade de saber que ela fazia a caminhada da vida, sem perder tempo com despedidas ou visitas surpresa ao Reino de Hades, aprofundando as feridas num buraco de coerência enegrecida. Um entusiasmo frouxo, sem pleonasmos ou pintura aguerrida. Importava-lhe apenas a vida, esquecer aquele agregado de sons a que chamavam música. Apenas o desejo que possa subsistir de uma cruzada comandada pelas batidas metódicas do coração.

Essa coisa de abrir e fechar os olhos, de aparecer nesta e naquela dimensão não passava de mero refúgio para uma incapacidade de aceitar a felicidade possível, como se o horizonte se esgotasse numa mera definição de como as pessoas se deviam comportar na vida curta e sem tempo para outras coisas que não o estabelecido.

Então procurava as rimas junto dos seres que respiravam sonhos, mesmo que depois expirassem qualquer coisa difusa. Não se tratava de aprender a zelar por possíveis avanços na cura para a infelicidade ou para a indiferença perante os sorrisos amarelos, apenas automatizar o desgosto e seguir sem indiferença às surpresas reservadas a quem sabe escapar à infame praga da nação zombie, constituída pelos desempregados da vontade, os que, tendo desistido tentavam infernizar a vida aos que tentavam construir um mundo melhor mesmo que virado para o seu próprio umbigo, que o egoísmo não tinha de ser um defeito mortal.

À volta da provável poesia em crescendo, alguns sons dispersos aninhavam-se constituindo como mensagens subliminares que apenas os 72 podiam captar. Ora juntá-los todos em espaços diminutos era impossível, que a sua massa mesmo incorpórea gastava demasiada energia.

Arturo ainda sonhava numa vigília pelo fim do mundo, de tempos a tempos anunciado. Apenas sabia que o fazia pela companhia encantada de Flor.