sábado, 5 de novembro de 2011

115 acercam-se as sombras


Quando um ciclo termina é normal pensar que o que se segue são projecções práticas da sabedoria acumulada, nos períodos negros anteriores à nova forma de vida que se avizinha. Nem sempre o que é normal é realidade, nem os mitos passam de conversa para manter vivo o interesse de qualquer coisa. As sombras são uma constante, tanto para a luz como para as trevas. De tal maneira são omnipresentes que o Purgatório é engolido por elas, sem amenizar a dolorosa transição das almas.

Arturo passou a pensar antes de aniquilar qualquer corpo que fosse, instruindo todos os outros para que tivessem em conta a armadilha letal que era submeter almas menos impuras à inquisição assassina, tanto do Céu, como do Inferno.

Os tempos nunca haviam sido de liberdade, já nem se punha em questão lutar contra o Bem e o Mal, apenas urgia dar as forças suficientes às almas injustamente condenadas. Tudo mudara de direcção com a angústia crescente na alma imortal de Arturo, após ter entranhado toda aquela experiência de terror puro.

Medo de morrer? Talvez o de não ter o poder suficiente para juntar todos os meios disponíveis para salvar os que não cedem. Isso em vez de aniquilar os reais inimigos da mera necessidade de deixar viver em paz o seu semelhante. Atingira o ponto de não retorno rumo às trevas imaginadas em todos os livros religiosos.

À medida que as portas se fechavam, as caras mais nojentas, invejosas e furadas de um tiro certeiro na testa aproximavam-se da sua alma, como se tivesse de aprender a degustar a arte da crescente podridão em que tinha vivido até àquele preciso instante. A cabeça latejava e o medo era algo que esquecera, mas as imagens teimavam em fazer regressar velhos sonhos de trevas que haviam explodido numa tarde em que regressava de uma ilha grega, em pleno mar Egeu. Porventura Lúcifer queria fundi-lo com a espuma que o barco ia provocando à medida que avançava velozmente rumo à civilização.

Pedir uma nova chance significava terminar com a própria vida, renascer sem qualquer reminiscência da loucura e da sagrada necessidade de a impingir a um mundo de filhos da puta que sobreviviam nos gastos escravizantes que alguns faziam entrar pela pele rumo à estupidez geral, liberdade obtusa e preconceitos que jamais permitiriam fazer avançar qualquer tentativa de salvar o Planeta.

114 um lamento distante


Ideias feitas havia muitas, fazer com que desaparecessem das cabecinhas iluminadas é que era um martírio que só desapareceria com o desejado Apocalipse. Urgia então a loucura para conseguir dar a volta a um texto em que a cada sinal se falava do fim, sem que se vislumbrasse uma qualquer hipótese de reinício.

Despertou os lamentos num cemitério, onde enterravam alguém que lhe devia ser conhecido, apesar de não reconhecer nenhum dos seres junto ao buraco onde iria repousar o corpo sem alma. Aproximou-se do caixão e encostou a cabeça à madeira fria.

Como poderia sentir-se num mundo onde ninguém se preocuparia em salvá-lo? Era mesmo muita gente e poucos tinham essa benesse de viver acima das possibilidades finitas do corpo. Normais eram as dores de cabeça provenientes da falta de descanso, tudo o mais eram apenas conjecturas de um fundo onde não haviam lugares para investimento.

Estava em causa a escravização global, a queda num abismo, provocada por Lúcifer, desde sempre atento às falhas de atenção do Senhor absoluto de tudo o que mexia. Talvez fosse essa mania da perfeição que dera livre curso aos infinitos demónios para incutir, na cabeça de alguns supostos iluminados, o fim do mundo, tantas vezes preconizado como depois adiado.

Não lhe era possível resistir ao chamamento de uma entidade alheia às ideias feitas para dar curso à implementação da revolucionária terceira via. Se na vida real tivera uma nova chance no amor e o café continuava a funcionar como uma das melhores partes do dia, então, de cada vez que atravessava o portal das dimensões em que vivia consciente, tinha de crescer o sentido por crucificar cada ser abjecto que contribuía para a estupidez do mundo.

Para lá do caixão jaziam milhões de almas, mortas pela inquisição dos seus próprios actos. Os lamentos apenas vinham da morte certa, das dores incertas, doa amores abandonados ao sabor dos pecados presos noutros mundos. Era de uma tortura atroz assimilar todo aquele Inferno sem chamas, que arrefecia até ao limite da sensibilidade os corpos, mesmo que ausentes das almas vazias de vontade.

Naturalmente afastava-se dos lamentos e dos fogos ateados pela imbecilidade dos inúteis que imbecilmente se arrastavam na ilusão de uma felicidade conquistada à custa da merda das ideias feitas.

Afinal as mudanças constantes a que tudo era sujeito, não passavam de uma mera ilusão.

113 o último beijo


Como se fosse um fado, as dores provocadas pela ausência daquele toque precioso dos lábios dela eram uma insuportável recordação que o relembravam a todo o instante a falta que lhe fazia fornicar. Era um martírio, mas recordava-se mais facilmente do último beijo que lhe dera que dos dias bonitos com gente feliz à volta. Era um egoísmo letal, mas estava-se bem nas tintas para o sofrimento que combatia todos os dias se ela estava fora do alcance do seu corpo.

Então era tempo de apanhar o combóio, esquecer as sessões de porrada do vizinho de cima à  vizinha de mamas arrebitadas e partir em busca dos beijos cuja dívida soberana atingia sempre níveis brutais de juros a cada dia que adiava a sua saciação. Era um cansaço que gostava de entranhar no corpo, percorrendo muitos milhares de metros apenas para poder navegar em conjunto com aqueles lábios de deusa encantada.

Ao longe o órgão Hammond, acompanhado por uma voz quente de um quarentão, não provocava as lágrimas previsíveis, nem vontade de fumar um charro e sorrir perante a merda saída das almas em convulsão. As portas haviam sido feitas para abrir sem ter que esperar uma qualquer ruptura epistemológica. Resumindo tudo sobravam poucos motivos que fizessem sentir valer a pena viver. As pessoas no seu estado de maturação mais avançado não passavam de meros farrapos, anémonas andantes que quebravam recordes das coisas mais absurdas que se pudessem imaginar.

Muitas vezes, depois do último beijo, apenas com um violento exercício de acrobacia mental conseguia pôr luz onde só havia almas prestes a cederem ao inimigo. Mesmo perto, os bastardos da sociedade faziam com que fizesse valer a pena a destruição da saudável loucura que brotava entre todos os peregrinos, mesmo sem saberem o que havia para além de Arturo ou sequer de Flor.

Para além do último beijo e das despedidas desesperantes, apenas um abismo de falta de desejo pelos outros. O que o levava a continuar pelos confins do Universo não passava então de um estranho segredo que brotaria do nada para corromper as ideias feitas dos inúteis sem coração para sangrar os pecados desnecessários.

O sorriso era um espécime em vias de extinção perante a estupidez massificada.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

112 os bolsos quase vazios

Sair de casa, num emaranhado de teias intrincadas em que o sentido se resumia a um mero estar, uma constelação de pequenos nadas que ela lhe podia dar, mas que a contínua crise insistia em afastar.

Era cíclico voltar a entrar em depressão. Não queria ser o líder de facção nenhuma, ter de terminar os dias sem poder respirar as coisas normais, apenas e só porque tinha um objectivo diferente do que era considerado usual.

Como corromper as ideias feitas de uma espécie condenada ao extermínio? Haveriam sempre os corruptores endiabrados que equilibravam a sua balança para o Apocalipse ou os guerreiros da ordem celestial que harmonizariam o universo pela punição dos pecadores. Ele não queria saber de nada disso e cada vez mais imaginava-se como um mero joguete nas mãos dos dois mitos, envelhecidos e sem controlo pelas suas jogadas mirabolantes.

Tinha o seu amor longe nos dias em que vagueava de pés bem assentes no chão e apenas a amava com loucura nas guerras da purificação da falta de vontade própria. Nestes dias de alma vazia era normal que se escapassem torrentes de lágrimas.

Não, não se permitiria mais vaguear ao seu próprio abandono, como se os sonhos mais negros deixassem de ser fonte de purificação para passarem a ser uma dor de sentido ausente.

Sofrer sim, mas com sentido e poder consubstanciar os pecados com doses de traquinice elevada ao expoente máximo da loucura. Talvez fosse essa vontade mais forte que a própria vida que o tivesse atirado para aquele quarto onde começara tudo. Era sempre hora de voltar, de acariciar as feridas, mesmo aquelas sem cura possível, na possibilidade de poder ser confundido com o Cristo em chagas.

Talvez o sofrimento não tivesse sentido, era possível que Deus tivesse tornado a Ira num pecado mortal porque os humanos feitos à sua imagem não o pudessem alcançar nas fraquezas, que ser omnipotente não passa de uma vil fraqueza, sempre paga com violência, mesmo depois do apaziguamento.

Saía de casa com vontade de estar com ela. Era o amor que precisava para poder acreditar que a vida valia a pena. Amiúde tomava a consciência que nada de nada podia voltar ao mesmo ponto depois de ela o ter descoberto.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

111 no rumor destas casas

As ruas esvaziaram-se, como se as almas se tivessem entendido e se escondessem dentro das casas a vibrar dos pecados sujos de cada uma. Algures no planeta algumas dessas almas juntavam-se com os seus invólucros para lançar de novo o caos.

Sem a mais pequena ponta de remoroso por não estar a lutar pela salvação do mundo, zelando pelo equílibrio entre dimensões, Arturo sentou-se em frente ao portátil enquanto procurava o conforto de alguma mensagem obtusa, amor assolapado ou vídeo para sorrir de alguma desgraça desembutida da imaginação natural de algum génio. Sim, ele tinha os seus ídolos, sem ter pés de barro ou permitir-se à humulhação dos rumores infundados transmitidos pelos inúteis do costume.

No rumor destas casas as almas ainda por perder adensavam a vontade de enegrecer quem fosse contra a necessidade de voar sem sair do mesmo sítio.

Arturo apenas teclava furiosamente as simples tentações a que um homem não tem que fugir. Nem sequer pensava em Flor ou na vida que queria ter com ela, longe das dimensões fantásticas que apenas serviam para acentuar os desiquilíbrios entre as forças cósmicas ou a decisiva importância de um átomo desgovernado.

Numa noite atípica pensou, sentou-se em frente à televisão enquanto o cão de uma vizinha uivava cada vez mais alto. Estava preso em arames enquanto a velha dona fodia com jovens recém-casados para poder manter a casa. Era um espécime nojento que haveria de liquidar quando pudesse. O cão não tinha culpa, nem Arturo tinha tinha a cabeça suficientemente fresca para saber que com um mero estalar de dedos podia fazer desaparecer da face da Terra aquelas aberrações andantes. Por vezes sentia-se definhar no meio de um conceito diferente da vontade de amor e sobretudo sentir que era sublimada pelos sentidos apurados, subjugando a líbido e amputando a possível harmonia visível em pequenos artefactos, que mais não eram que a felicidade, quase sempre utópica, uma espécie de Mar Vermelho sem passagem para os justos, a morte e o desespero.

Olhava para o relógio do seu coração tentando adivinhar quando lhe chegaria o verdadeiro cansaço. Por enquanto a felicidade resumia-se a amar Flor entre montanhas de loucos sem interesse por nada.

Olhava de frente para a televisão enquanto explodia mais um reactor nuclear. Apenas uma vítima da falta de arrefecimento adequado, que os envolventes iriam pagar bem caro com o corpo.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

110 noites abertas para a loucura

Mas quando as massas não se educam para que exaltem o seu interior, constituído por seres únicos com diferentes vontades, há a natural tendência para que alguém sobressaia impondo a natural necessidade de subjugação dos demais, sempre em nome de um bem comum que quase sempre não passa de mera retórica.

Arturo, Flor e todos os peregrinos declararam guerra total a este estado de coisas, porque cada um deve ser portador de uma ideia de felicidade que não prejudique os demais.

Todos sabiam das imensas mensagens subliminares que induziam a educação civíca do comum dos mortais, porém como era um dado que se sabia estar enraízado há demasiado tempo, encolhiam-se os ombros e seguia-se numa espécie de descrença abafada pela necessidade de sobressair com balelas, artefactos absurdos exteriores ao âmago de cada um.

A tarefa estava a surtir um efeito perverso. O mundo já tinha estado á beira da destruição total e a terceira via dos apenas preocupados em buscar a sua própria felicidade, sem interferir com os desejos diferentes de cada um. Era apenas um conceito de vida que parecia estar a ser convenientemente manietado.

Arturo escondia-se bem das investidas de Deus e de Lúcifer, da tentação e da expiação do pecado, mas tornava-se impossível conter a infecção generalizada a que estava a ser sujeita a humanidade. Ponto assente era o que circulavam boatos que haveria por aí um bando de mal-feitores que tinha  o dom de perturbar a ordem espiritual das coisas. Como se descobriria quem eram? Provocando um novo holocausto, assumindo a necessidade de destruir toda a cultura que a ela estivesse ligada. Não era fácil fugir a isto tudo, mas fazendo uso dos poderes que ia descobrindo resolveu olhar para dentro, declarando guerra os vícios mais perniciosos de cada um dos seus guerreiros.

A função provocou o espanto de alguns visados e deu-se uma cisão grave quando se descobriu o informador que passava para o Senhor dos Infernos toda a documentação relativa a planos de exterminação do mal. O fim deste traidor foi a morte por decapitação, as consequências da libertação da sua energia negativa, um acesso generalizado de loucura que afectou todos à volta, enquanto esta não assentou noutro corpo pronto a viver.

109 restos do verão

Sem loucos e sem peregrinos, apenas a constatação que o mundo se perderá no meio das invejas mesquinhas de humanos que tudo têm, excepto, a capacidade de transformar algo simples na felicidade alheia.

Sem alternativas ao degredo mental a que todos estão sujeitos, contra o que alguns lutam, seja através da sua própria infelicidade ou dos químicos induzidos, os restos de dignidade que ficam não serão suficientes para suportar a indiferença a que a falta de tempo leva. Seria bem mais interessante fugir pela via do voluntariado, das pequenas falhas que juntas serão piores que um furacão. Haja desejo, momentos intensos que façam parar a espiral de destruição do que abriga. Pulverização dos malfeitores é o que urge. Sem que os pais ou as mães tenham que sentir orgulho ou desgosto, apenas a natural tranquilidade de sentir que todos os filhos seguem o natural caminho da sua acidentada espiritualidade.

Apenas restos de um tempo que acabou sem que tenhamos feito algo para o salvar. Não é que se possa sentir saudades da inveja e mesquinhez dos seres humanos, se ela varia apenas se deve ao dinheiro e aos resquícios de uma educação quase sempre desiquilibvrada por falta dos conhecimentos precisos.

Arturo tinha momentos em que a cabeça quase explodia. A informação era demasiada e as vidas, passadas e futuras, pareciam juntar-se numa só, forçando a abertura das portas que desuniam os Universos paralelos. Teria sido melhor que o seu pai não tivesse voltado da guerra para os braços ternos da sua mãe guerreira?

É possível que o destino seja uma simples brincadeira dos deuses, uma aposta suja em que uns são mais fodidos que os outros, em que a perversidade muitas vezes é defeito mas em outras tantas ocasiões motivo de aliança, sempre em função do vil metal.. 

Sendo o ser humano feito à imagem de Deus daí se entende a omnipotência como uma estupidez, motivo de guerras e mortes sem sentido.

Lá na outra dimensão onde guerreia o Bem e o Mal, apenas procura assentar as poeiras e permitir que os humanos se assemelhem à aparente calma da natureza que os rodeia. Entendendo-a, é certo que se poderiam gerar muitos mais entardeceres à beira-mar sem medo que um tsunami repentino os engolisse.