terça-feira, 8 de março de 2011

056 a terra sem vida

Ainda no ar apercebeu-se de um aglomerado de pessoas. Conseguia distinguir um ruído quase insuportável e braços no ar, apontando na sua direcção, como se fossem zombies desgovernados a babarem-se sem parar.

Antes que começassem a correr de encontro a si, aterrou num buraco fundo onde ficava abrigado dessas vistas indesejadas. Respirou fundo e deu-se conta de um pequeno charco repleto dum líquido vermelho que lhe parecia ser sangue. Apesar da estranheza do sucedido decidiu-se a sair dali, primeiro com algumas cautelas e depois correndo rapidamente para o primeiro descampado que lhe aparecesse. Podia então ver os corpos deambular num pranto de incalculáveis sons que prenunciavam algo de muito mau.

Sem que nada o fizesse prever viu-se rodeado de sal, que ia crescendo à sua volta como se fossem as partículas sobejantes das lágrimas sujas  de todos os que por ali se arrastavam.

Em poucos segundos ficou completamente tapado por sal. Começou a rodopiar sobre si mesmo descontrolado da sua vontade e o sal entranhou-se por completo no seu corpo, que, no entanto, não registava qualquer tipo de alteração.

Depois de consumir os sonhos negros em forma de lágrimas salgadas deu consigo num deserto sem fim à vista. Os que havia visto antes simplesmente desapareceram, ficando apenas uma melodia antiga que falava de olhar e esperar, pela eternidade. Numa terra sem vida, nasceu em definitivo o sentido de todos os sonhos que o haviam habitado antes. A realidade podia alterar-se de um momento para o outro mas tudo se estava a concretizar como se fosse uma profecia.

Após caminhar longas horas debaixo de um Sol escaldante e sem que conseguisse descortinar o segredo que o fazia voar, ajoelhou-se, na areia ardente e escutou uma prece vinda de um simples grão de areia, multiplicando-se pelos outros todos até o cercar, numa melodia de crescente desespero. Aquietou-se, porventura com medo, seguramente ansioso. A voz nascida da areia entrou dentro da sua alma e revelou-lhe a sua missão antes de se soltar pelo corpo e purificar a corrente sanguínea:

'Desta terra sem vida chegarás a uma cidade onde as pessoas se alimentam das fraquezas alheias. 
Seguirás o teu caminho sem hesitar um passo. Buscarás o cofre que contém o segredo para derrotar Lúcifer.
És o escolhido e nada pode ser feito para lutares contra os demónios, que se acercarão de ti. Ah deles nunca te livrarás!
Mas sempre que a tua alma se apoquente lembra-te que os anjos estão atentos a tudo o que se passa e por eles serás protegido quando a morte se afigurar a única saída possível.
Quando chegares à dita cidade, busca pela única casa que tem dupla cave. O teu instinto é infalível e se te deixares levar por ele alcançarás sempre tudo o que se te pede.'

Levantou-se e seguiu caminho até encontrar a tal cidade.

segunda-feira, 7 de março de 2011

055 coração esmagado

Pegou no carro e viajou de novo para o outro canto de um delírio que era a sua realidade. Nem anti-depressivos, nem bebidas energéticas para conseguir fazer o caminho sem que os olhos se fechassem. Queria a lucidez total para que soubesse o que era real ou imaginação.

Com a vida corrompida por dentro, seguiu caminho com a voz bem afinada e a cantar as paixões da adolescência à muito passada. Cerca de doze horas depois chegou ao destino, estacionando o carro atrás do Ajuntament. Atrás uma senhora, muito bem vestida, observava-o. Olhou para lá e ela foi-se aproximando. Um arrepio passou-lhe pela espinha e começou a andar até ao parquímetro. A senhora, absurdamente sexy parou atrás sussurrando algo. Ele virou-se e ficou a esperar algum tipo de reacção. Apenas teve tempo de lhe ver os iluminados olhos verdes. Caiu inanimado e só veio a acordar num quarto pequeno, decorado com cortinas vermelhas. Rogou uma praga aos céus e jurou que acabaria com aquele mundo fétido que o rodeava. 

Rasgou as cortinas e lançou-se da varanda, buscando a morte pouco mais abaixo. Por azar passava nesse mesmo instante uma carroça cheia de palha que lhe alongou a vida. Enfurecido entrou numa sex-shop e arrancou a orelha a um cliente que comprava artefactos sado-masoquistas para ser seviciado pela namorada. Sussurrou algo e cuspiu o pedaço de carne arrancado à força, enquanto o homem segurava no sexo endurecido da excitação da orelha desavinda com o seu corpo.

Fugiu rapidamente dali sem que conseguissem sequer ver quem ele era. Meteu-se no carro e fugiu. Os olhos irradiavam sangue e ao olhar para o espelho retrovisor não conseguia distinguir um horizonte de beleza e contemplação. 

O barulho ia aumentando provocando um estranho transe que lançava as pessoas para a beira de qualquer sítio perigoso. Ao mesmo tempo a terra começou a mover-se, engolindo tudo à medida que a tremideira aumentava. Voltou a olhar pelo espelho e via levantar-se atrás de si uma gigantesca nuvem de poeira, acompanhada por um ruído ensurdecedor e um forte odor a morte. Saiu do carro, mesmo sem o parar e mesmo com o seu impacto violento com o solo que o fez estatelar-se, levantou-se e seguiu, com algo branco a sair-lhe da perna ensanguentada.

Experimentou dar um salto e manteve-se no ar. Era a maneira de escapar a uma morte que, decididamente, não era algo que conseguisse concretizar.

Enquanto voava foi tomado por um sentimento de fúria desmedido que o levou a destruir tudo o que lhe aparecia pela frente, sem sequer pensar que esses actos poderiam ter consequências irreversíveis. Sentia-se invencível.

O coração batia descompassadamente e ao longe parecia que as coisas se acalmavam de novo.

domingo, 6 de março de 2011

054 a península delirante

A mulher deslumbrante ia abrindo caminho por entre as hordas de homens e mulheres excitados. Ao passar por alguém, este era acometido de demência instantânea, atacando quem lhe aparecesse à frente até nem os ossos lhe restarem.

Não foi preciso muito para que ali mesmo tivesse início uma pequena guerra cívil, onde a maldade de cada um era extrapolada muito para além do confronto físico. Os corpos despedaçados foram-se acumulando.

Ele ficou paralisado até ela chegar perto de si. Quando o alcançou despiu-o e fornicaram até à exaustão, enquanto o Apocalipse parecia tomar conta de todos à volta deles. Passado o tempo de se saciarem, fundiram-se, num processo absolutamente excruciante para ele que gritava sem parar sem que, no entanto, tentasse libertar-se.

Assim que terminou este processo, deu por si num carro, a caminho das praias. Ao seu lado estava de novo a namorada. Atrás as quatro filhas cantavam felizes um emaranhado de sons que se entranhava bem na alma.

Deixou de pensar no que era realidade ou fantasia. Sabia bem que elas nunca haviam estado ali e no entanto a realidade era aquela. Começou simplesmente a acreditar que a história dos sete demónios era verdade. Só isso explicava tanta e tão confusa reviravolta que o levava a tocar os extremos da península ibérica em sonho e realidade sensata e irracional ao mesmo tempo.

Dentro da sua tenebrosa lucidez deu-se conta que o que se passara antes fora a entrada de um demónio dentro de si. Sentia-se normal à mesma, mas a infalível intuição disse-lhe que algo estava profundamente errado. Poucos segundos depois teve um brutal acidente de carro, perdendo a consciência.

Ao acordar viu uma grande azáfama de médicos e enfermeiros. Ouvia falarem acerca de transfusões e da necessidade de entubar. Voltou a desmaiar. Tudo ficou completamente negro, não se lembraria de mais nada até voltar a acordar.

Lá fora dava-se uma revolução sangrenta, sempre contra a invasão das tropas americanas, cuja indústria de armamento decidira por sorteio ser a península ibérica o sítio ideal para despejarem as suas bombas excedentárias. Portugal, como quase sempre, era o elo mais fraco e entrariam por aí.

Os supostos senhores do mundo foram novamente surpreendidos com a resposta eficaz dos ibéricos não aliados de Madrid, que em segredo queria erradicar de vez toda e qualquer cultura que não fosse cem por cento castelhana. Essa surpreendente visão fê-lo despertar. 

sábado, 5 de março de 2011

053 viagem subitamente interrompida

Ao  largo do Tejo, entre Porto Brandão eo Estádio da Tapadinha deu-se um fenómeno curioso.

Ele sorria, do lado de Lisboa, como se viajasse nas consequências de uma qualquer dose de tempack, a nova droga da moda, imune a qualquer tipo de despistagem. Igualmente imune a essa espécie de felicidade artifical, formava-se um remoínho que levantava um fio fino de água que subia até à Ponte Tejo, parando no combóio que a atravessava. Olhou para cima e numa espiral de violência repentina uma nuvem negra ia tomando a forma de um tornado grau cinco, descendo até ao rio. Como já não sabia aquilo em que acreditar, pensou ser apenas uma violenta ilusão de óptica. Porém não se tratava de um pesadelo artísticamente elaborado pela sua mente inquieta.

Lembrando-se dos passos que dera no ar, concentrou-se e tentou repetir a façanha. Levantou voo, dirigindo-se desgovernado para dentro do fenómeno raro que o atraía como se fosse uma estranha forma de sedução onde voltaria a materializar todos os entes perdidos no dia anterior. Algo podia ser feito e estes novos poderes assim o demonstravam.

O combóio seguiu como se nada se tivesse passado. O fenómeno desapareceu tal como tinha aparecido. Já não haviam nuvens no céu e os remoínhos tinham-se evaporado.

Nem se havia tornado invísível, apenas seguiu até às portagens e mesmo na cabine 10 encontrou o motivo físico dessa estranha sedução que o fizera seguir pelos ares até encontrar uma mulher deslumbrante a receber dinheiro do condutor de um carro funerário. Um feixe de luz passou entre esses dois seres e o dito condutor seguiu desaparecendo no horizonte.

Ao mesmo tempo ele juntou uma pequena multidão, provocando uma manifestação espontânea que iria parar todo o trânsito, precisamente no momento em que se ia intensificar.

Era quase Natal, as gentes da cidade grande iam nos seus acessos de loucura induzida gastar os subsídios e esta era uma mensagem para parar, reflectir, meditar, fosse lá o que fosse desde que parassem.

Da mesma forma espontânea a mulher deslumbrante cruzou o seu olhar com ele. Saiu da cabine e provocou um alvoroço sem precedentes. Com muita calma dirigiu-se a ele, enquanto as suas ancas diabólicamente sedutoras excitavam todos os homens e mulheres até à loucura.

domingo, 23 de janeiro de 2011

052 nas horas de maior calor

Depois de uma noite agitada, despertou suado e à beira de um ataque de nervos. Sonhara uma existência normal que afinal não passava de mera fantasia. Quando os olhos se abriam as ideias sucediam-se em catadupa e a cabeça parecia explodir, o que até nem lhe parecia má ideia, não fossem as insuportáveis enxaquecas.

Estranhava o tesão que sentia perante a crueza dos factos e como a namorada não passava de um elaborado plano que o consumia, tinha que se masturbar para libertar qualquer energia negativa que possuísse. Não que se sentisse melhor, apenas um pouco mais aliviado do tesão que o angustiava.

Sem ser o costume que o assaltava todos os dias, resolveu tomar um banho de água gelada, aclarando as ideias que teimavam em suceder-se a um ritmo cada vez mais rápido. Deu um grito e deixou correr a água, como todos os humanos, uns mais que outros, foi-se habituando à ignóbil temperatura e deu-lhe um novo ataque de tesão sucedendo-se todas as mulheres com quem triunfalmente copulava dentro daquele chuveiro de magia. Até que caiu redondo no chão, vendo um suave fio de sangue a cair ao lado da sua cabeça. Pôs a mão no nariz e com o início da dor, apercebeu-se que era de lá que caía.

Levantou-se com dificuldade e podia ver o sangue claramente, porém este desaparecia no contacto com o chão. Fechou a água e saiu todo molhado da banheira. Limpou o vidro embaciado e olhou-se com atenção. Além da cara vermelha da água absurdamente quente, nada mais se passava.

O sangue parara de cair e do nada começou a cantar 'eu menti à saudade', fado injustamente obscuro com uma voz feminina deslumbrante e um acompanhamento musical como só se podia escutar naquele canto esquecido da península ibérica. Deu-se então conta que estava quase a bater com a cabeça no tecto. Sim os pés já só tocavam o ar, invisível para o absurdo dos humanos, para ele apenas mais uma de muitas matérias possíveis.

O calor tornava-se cada vez mais intenso e esta nova percepção das coisas levou-o a sorrir como nunca o havia feito. A paz agora sentida era algo absurdamente belo, como se dentro da sua existência se tivesse estabelecido uma nova vida. 

Voou até ao quarto e sem se dar conta, apareceu vestido. O mundo parecia ser só seu, com o vendaval de acontecimentos que se sucediam.

Entretanto estava preste a dar-se uma nova revelação.

sábado, 11 de dezembro de 2010

051 o louco impossível

De um momento para o outro a sua vida desmoronou-se. Abria e fechava os olhos não querendo acreditar no que lhe estava a acontecer. Já nem era uma questão de demónios escondidos no seu sub-consciente, mas a realidade desenhada em cores sombrias que levara ao brutal assassinato de todos os seus conhecidos, desde a família, à namorada e filhas, aos amigos e meros conhecidos.

Estava em casa envolto num oceano de sangue que lhe brotava do peito sem parar. Lá fora ouviam-se as sirenes e na televisão falava-se de uma chacina sem precedentes num  país pequeno junto ao Atlântico. Não, não era um simples pesadelo do qual pudesse acordar. A realidade mudou bruscamente e a loucura instalou-se no seu mundo de ideias feitas. Claro que havia de fazer parar o sangue de jorrar livremente do peito, travar as dores tenebrosas que lhe apanhavam a cabeça, serenar tudo e, quem sabe, acordar de novo como se não fosse nada. Mas era e ao mesmo tempo que ouvia a polícia a chegar ao seu apartamento, subiu ao sótão e rebentou com as telhas. Fugiu, completamente nu e ensanguentado. No desvario da situação tropeçou e caiu para a rua. Tudo ficou negro, não se conseguia mexer e a polícia fechava todas as possibilidades de escapar. Ninguém imaginaria que pudesse ter salvo um osso que fosse daquela queda aparatosa. Porém o pesadelo dos perseguidores transformou-se em realidade e deu-se um fenómeno meteorológico raro, com um temporal indescritível que alagou toda a zona em volta dos seus corpos, arrastando-os para parte incerta.

Horas depois acordou e o Sol brilhava, mais intensamente que nunca. Muito rapidamente pôs-se de pé, vestindo um fato impecável, com uma gravata de fino corte e uns sapatos de marca internacionalmente reconhecida, caminhava apressadamente rumo a algum sítio.

Esteve nesta azáfama algum tempo. Parou num quiosque e viu os jornais a anunciarem um suposto serial killer que desaparecera misteriosamente na noite passada, após ter deixado atrás de si um gigantesco rasto de sangue e corpos despedaçados. Seguiu, como se nada daquilo tivesse algo a ver consigo. Não tinha porque ao passar por um espelho não reconheceu a sua própria cara. Não se assustou, buscou um banco de jardim e sentou-se, inspirando profundamente para entender o porquê daquilo tudo.

Primeiro tirou a carteira, vasculhando os cartões e possíveis fotos. Viu apenas o cartão do trabalho e a carta de condução. O nome não condizia com o seu, apesar da cara ser a mesma. Aos poucos começou a entender que aquele passo de loucura era tão somente a possessão de outro corpo. O porquê já lhe havia sido explicado, era tempo de começar a entender.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

050 país de exílio

Se por acaso tivesse de voltar ao seu país, abdicando das conquistas efémeras ia ver apenas um futuro negro à sua frente, como se fosse uma doença e à sua espera estivesse o vírus da recaída. Não que vivesse no paraíso mas à medida que iam passando os dias sentia menos necessidade de voltar àquele modo de vida sem sabor e às pessoas que tinham pena da sua condição por detrás de um sorriso de circunstância. Aquilo que havia sido a fuga ao Inferno sem chamas estava de novo a transformar-se no regresso, como se fosse uma sina viver entre batalhas do que não gostava, nem sequer fazendo um pequeno esforço.

A relação com a namorada esfriara um pouco apesar dos intensos calores por quase nada. E voltando à estaca zero, nem calores nem frio, apenas um vazio que não deixaria ninguém preencher.

Era tempo de colocar-se de frente para a montanha, mesmo sem frio ou nuvens carregadas de desespero, apenas uma vista para o desejo de alcançar o topo do seu próprio mundo. Conseguia um sorriso e uma certa dose de alívio quando colocava o pensamento positivo e alguma resignação à frente do destino e das costumeiras fatalidades.

Agora que olhava para o Céu e já não se desgastava com as cinzas de fracassos passados, sempre podia ir de encontro ao ansiado momento de felicidade em que ela se acercou do seu corpo suado e o beijou com um amor desmedido. Nem parecia o primeiro beijo de alguém novo na sua vida, apenas a noção de que as suas reticências à permanência no país de exílio estava plenamente justificada com a simples existência daquele ser de uma generosidade sem limites.

Foi através dela que tomou contacto com um habitante da terra que lhe deu as notícias acerca do seu envolvimento na guerra que se travaria no anunciado Apocalipse. Pouco dado a especulações e a retratos dramáticos da sua própria pessoa, começou a ser tomado de assalto por pesadelos ainda mais envolventes que a sua vida de carne e osso. Afinal a sua deslocação não era fruto do acaso, bem como a progressiva surdez, presente na definição do seu carácter, primeiramente introvertido e depois cada vez mais anti-social.

Apesar de tudo dava-se ao natural trabalho de dar todo o conforto possível às filhas dela, em profunda revolução hormonal.